Guerra na Ucrânia - A opinião de Clara Ferreira Alves

Clara Ferreira Alves

Escritora e Jornalista

Esta guerra não pode ser ganha. A vitória da Ucrânia foi preservar Kiev e o regime, a de Putin foi tomar o Donbass

02 outubro 2024 09:20

 

Existe uma pressão contemporânea nos media liberais para dizer sempre duas coisas, no mais perfeito exemplo de maniqueísmo moral que caracteriza a disponibilidade permanente das boas intenções em detrimento da realidade e da verdade. 

O primeiro postulado, que nunca pode ser desmentido pelos factos, é o da vitória da Ucrânia. Não interessa que nada, mesmo nada, aponte para a vitória numa guerra que não é ganha com armamento sofisticado e sim nas trincheiras, palmo a palmo, disputando terreno à custa de cadáveres dos soldados. E a Rússia não se importa de sacrificar homens e de continuar a avançar, embora se possa concluir que a superioridade tecnológica e eletrónica da Rússia não tenha sido prejudicada pela enxurrada de armamento americano, mísseis e drones europeus. Sem a América, a NATO é um fantasma e os propulsores desta guerra insana que devia e podia ter sido evitada declarando ab initio a neutralidade da Ucrânia e deixando a diplomacia fazer o seu trabalho, são muitas vezes, mesmo ingenuamente, agentes dos lóbis das armas. E terão à sua espera empregos, think tanks, bolsas, viagens e outras benesses quando deixarem os lugares políticos e de poder que ocupam.

Espiem o futuro de Stoltenberg. Se querem um lóbi mais poderoso que o das petrolíferas, da petroquímica, das farmacêuticas e das drogas, é este. Armas e quem as fabrica e vende, quem as exporta, quem enriquece à custa e às costas da miséria alheia. 

A Ucrânia foi o terreno ideal para experimentar novos armamentos sem arriscar um soldado, sob o halo sagrado das boas intenções e da liberdade. Nos Estados Unidos, a Boeing ganhou e ganha tanto dinheiro com o negócio do armamento que se preparava para deixar o negócio da aviação, sendo forçada pelo Governo a recuar. Entretanto, a Boeing descurou toda a parte da aeronáutica civil e os aviões saíram da fábrica sem condições de segurança, descurados os procedimentos habituais. Centenas de mortos em dois desastres aéreos, com o 737 MAX, denúncias, embustes. E, mais grave ainda, os dois whistleblowers que denunciaram as falhas de segurança dentro da Boeing morreram um a seguir ao outro, em misteriosas e súbitas circunstâncias. Eliminados. 

Quando está em jogo a segurança militar americana e o mundo secreto que jaz por baixo de tanta generosidade na venda e distribuição de armas para guerras alheias, vale tudo. Nenhum jornalismo se dedicou a investigar estas mortes, ou acabaria a intenção numa valeta. No que respeita a armas, nada, ninguém, mexe uma palha para fazer perguntas e saber mais. Demasiado perigoso, secreto e impublicável. O tráfico de armas na guerra da Ucrânia, com atores como a Sérvia servindo a dois amos, com os gangues do costume, é um segredo bem guardado. E bem pago. 

Por sua vez, Zelensky, um comediante com uma frase bem escrita, por outrem, precisou de armas e não de uma boleia (para fugir), foi erigido numa figura tutelar do século XXI, construído pela propaganda ocidental com a argamassa das estátuas. Zelensky goes to Hollywood. Um Churchill, nem mais, segundo as piedades gerais bolçadas nos múltiplos ecrãs das televisões. Alguns americanos não toldados, sobretudo da CIA, que nunca confiaram em Zelensky nem na bravura pessoal protegida pelo bunker e a entourage de oportunistas, incluindo a senhora que tinha 12 Range Rovers, provavelmente já purgada nas sucessivas purgas de Kiev, sabem que vai ser difícil livrarem-se dele. O grande jornalista de investigação Seymour Hersh tem relatado algumas destas dúvidas impronunciáveis nos media e foi logo acusado de ser um agente de Moscovo. Nada mais grotesco.

A Europa sabe, mas persiste nos erros do costume, enfronhada numa decadência civilizacional. A União Europeia atravessa a crise mais grave desde a criação e finge que está tudo bem, enquanto a extrema-direita galopa na vitória. Os europeus, com a sua qualidade de vida diminuída, a sua capacidade financeira diminuída, legando ao futuro e aos jovens uma dívida impagável, que é o que Bruxelas tem feito, enquanto a demografia se aproxima da extinção, começam a ter uma certeza. A imigração não é a salvação, e a imigração descontrolada fará dos países europeus e do seu cimento social, político, religioso e económico, uma irrelevância. Outras etnias, credos, fundamentalismos e convicções, mais sólidos pela religião ou os costumes mesmo quando primitivos e tribais, acabariam por comandar a Europa num futuro não longínquo, e o que restaria seria um depósito de velhos sem terem para onde ir. A distopia europeia, que Michel Houellebecq pintou com negras cores. Com esta retórica, não custa perceber a extrema-direita a ganhar eleições.

Se os jovens não têm direito a uma casa e a constituírem uma família, sendo a habitação a mais grave crise da Europa, e se estrangeiros milionários têm direito a regimes fiscais de benefício, do Reino Unido e da Itália à Grécia, Espanha e Portugal, enquanto se pede aos autóctones que paguem o futuro e a doença e o envelhecimento da população, juntamente com os imigrantes, que esperança é oferecida pelos chefes políticos e suas perorações? E se, ainda por cima, pedem aos europeus que paguem uma guerra perdida em nome da supremacia ocidental, não espanta que os resultados sejam o que são. E nem vale a pena falar da emergência climática, posta de lado.

Ouvir militares bolçarem as vantagens de um serviço militar para “os jovens”, para os fortificar e endurecer, é um escândalo. Em Portugal, país de brandos costumes sem autoridade, ouvir o chefe militar da Marinha, o novo almirante das nossas fantasias musculadas, perorar sobre política interna, candidaturas a Belém, e bons usos do militarismo compulsivo, só poderia ter um resultado. Despedir imediatamente o almirante do posto que ocupa, por transgressão das regras dos militares, manter o bico calado em questões civilistas e políticas. Agora ninguém segura o almirante, e os jornalistas entretêm-se com sondagens para a presidência que o dão como favorito ou intrigam que o atual Presidente o odeia. É o grau zero da autoridade num país ingovernável por esta razão, ninguém manda, mandam todos ao sabor do dia e dos dichotes políticos do dia. Numa fantasia em que eu, moi, exatamente, fosse primeira-ministra, o almirante tinha 24 horas para se demitir ou ser demitido. Na imortal frase de Durão Barroso a um dos seus ministros, se a memória não me falha. E obrigada pelas vacinas, já teve a Grã-Cruz.

É claríssimo que a Europa não pode simultaneamente armar a Ucrânia e manter um módico de Estado social, ou nem uma coisa nem outra. E Zelensky, nas andanças pelo mundo, agora patéticas em vez de triunfais, está disposto a dizer tudo e o seu contrário para se manter à tona. Não quero Putin na mesa das negociações de paz, a Ucrânia vai recuperar a Crimeia, quero Putin nas negociações de paz, a Ucrânia invadiu a Rússia (em meia dúzia de metros quadrados enquanto no Donbass perdia quilómetros), quero mais armas, mais dinheiro, mais isto e aquilo, e quero um encontro com Trump. No encontro com Trump, vimos claramente o oportunismo e a falta de convicções geradas no desespero. Não no desespero da derrota ucraniana, sacrificadas as vidas ucranianas para nada, no desespero da derrota pessoal de um chefe forjado na ilusão da potestade visionária.

Quantas purgas antidemocráticas em Kiev serão necessárias para o Ocidente se livrar de Zelensky e assinar um armistício, mesmo do tipo do das Coreias? E, sim, a Crimeia e o Donbass estão perdidos, e a Rússia reganhará um território onde se fala russo. Para salvar a Ucrânia, o que resta da Ucrânia, Zelensky e a sua coutada terão de sair ou sair da frente. Ou a região tornar-se-á um sorvedouro de dinheiro, e trará a morte da democracia europeia.

Nada atesta mais o viés das notícias do que o recrutamento de condenados nas prisões para a soldadesca. Quando Putin o fez, acolitado por Prigozhin, um bandido que a certa altura passava por “herói” na marcha de Moscovo e nas opiniões da treta, foi considerado o símbolo do “mal”. Quando Zelensky fez o mesmo, nem um pio se ouviu.

Esta guerra não pode ser ganha por nenhuma das partes. A vitória da Ucrânia foi preservar Kiev e o regime, a de Putin foi tomar o Donbass. Putin só pode ser derrubado pelos russos, e a paz certamente teria essa consequência, enquanto a guerra o engorda. Quanto a Biden, a política externa foi o maior desastre das últimas décadas. A fantasia de derrotar a Rússia é um velho sonho americano, com consequências que o mundo paga desde a Segunda Guerra Mundial.

A fantasia antiamericana, simétrica e igualmente perigosa e enviesada, é a da destruição de Israel 
para dar lugar a um Estado palestiniano do Jordão até ao mar. Sobre isto, o segundo postulado, escreverei na semana que vem, um ano depois de 7 de outubro de 2023.

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