Para memória futura
Onofre Varela – 10 de out. de 2024, 20:13 (há 16 horas)
CARTA ABERTA A LUÍS MONTENEGRO,
DO MEU CAMARADA JORNALISTA MIGUEL CARVALHO
Caro Sr. Primeiro-Ministro:
Espero que se encontre bem. Li a sua intervenção pública
sobre os jornalistas e o jornalismo e, se me permite, vou abster-me de repetir
o que disse e passar adiante, pois ambos sabemos do que estamos a falar.
Antes de mais, saiba o seguinte: em matéria de autocrítica,
diagnóstico e reflexão não há nenhum congresso do PSD que se compare aos dois
últimos congressos de jornalistas. Pelo menos. É pena que nenhum dos assessores
do seu governo, e há tantos ex-jornalistas entre eles, não lhe tenha dito isso.
Se há profissionais obcecados com o que fazem e as condições
em que o fazem, somos nós. Se há profissionais que esgravatam as próprias
feridas – por vezes, em demasia – e discutem até à exaustão (e às vezes quase
até ao confronto), somos nós. Se há profissionais que procuram, no seu íntimo,
as circunstâncias mais dignas de exercer um ofício que honre a República, mesmo
quando tudo “arde”, somos nós. Pode pedir os documentos e os vídeos, estão
disponíveis. Talvez se espante sobre o rol de insatisfações, frustrações e
erros próprios que admitimos. E depois ainda nos desunhamos a tentar que os
governos nos ouçam, sem efeito.
De qualquer forma, tomara eu que o PSD tivesse feito a mesma
barrela interna que o cavaquismo, por exemplo, merecia. Talvez hoje não
houvesse um oráculo televisivo em figura de gente no primeiro lugar da sua
lista de preferências para Belém. Um desses que caem sempre de pé e vêm do
tempo em que a RTP pagava os Futres. Mas os líderes passam e o esterco fica.
Por isso lhe digo: não precisamos que venham de fora dizer-nos como discutir,
melhorar e fazer. Se levassem à séria uma pequena parte das nossas reivindicações,
já era bom.
E não me leve a mal: também podíamos dar conselhos sobre a
forma como o PSD, ao longo de décadas, poderia ter prestado relevantes serviços
à República nesta matéria. Só eu devo ter assistido a uns dez. Mas para os
disparates não chegaria uma resma de moções. Tenho respeito pelo seu ministro
Pedro Duarte, a si não o conheço tão bem. E custa-me ver o seu ministro, no
mínimo, desfocado do essencial, após tantas propostas que foram feitas, algumas
das quais pelas estruturas representativas dos jornalistas. Mas já que também é
do seu partido, aproveite para trocar umas impressões com Miguel Poiares
Maduro. Talvez lhe pudesse contar umas histórias sobre aquilo que a nata do
capitalismo português pensa do jornalismo de investigação e de serviço público
que alguns teimam em fazer, contra tudo e todos. Pergunte-lhe o que ouviu
quando, há uns anos, reuniu à mesa os senhores das principais fundações
privadas do País e lhes propôs apoios sérios para o jornalismo. Se calhar vai
ficar surpreendido com o requinte das respostas dos mecenas nacionais, etc e
tais. Depois admire-se que nos viremos para o Estado.
Vá, não me interprete mal. Olhe que não sou dado a
corporativismos. Muitos de nós são também bastante críticos de um certo
jornalismo justiceiro, de certos cavaleiros andantes em horário nobre,
daqueles, enfim, que tendo uma carteira profissional, a usam, no quotidiano,
contra tudo o que ela representa. Não são recomendáveis e, infelizmente, não
são poucos. E se permanecem ao serviço isso diz muito mais sobre o ecossistema
mediático e financeiro que a classe política alimenta e perpetua há muitos anos
do que sobre os "podres” do ofício. “Um jornalismo cão há de merecer um
mundo cão”, escreveu Mário de Carvalho há décadas. E ainda estávamos bem longe
deste “território comanche” onde abundam empresários instantâneos e de vão de
escada que descobriram o filão de terem órgãos de informação. Como se pudessem
– e alguns podem – fazer deles lavandarias dos seus próprios currículos (e dos
currículos dos amigos). Que, de resto, tresandam.
Por momentos, pensei que o senhor primeiro-ministro iria
dedicar dois/três minutos da sua intervenção a esses “bons rapazes” ou que iria
anunciar algumas medidas para que empresários de fancaria deixassem de ter a
vida tão facilitada por estas bandas para se tornarem “donos disto tudo” na
Imprensa. Já olhou para o tipo de gente que hoje se acha no direito de
frequentar uma redação e dar ordens? Já dedicou cinco dos seus preciosos
minutos a tentar perceber o emaranhado de paraísos fiscais, de redes transnacionais
e interesses subterrâneos que representam? Ou ainda não reparou nas mais
recentes crises que abalaram grupos de comunicação social? Já pensou que foi o
mercado, com rédea solta, que nos trouxe aqui?
E, já agora: o que
fez o PSD na Europa para contrariar a ditadura do "Google y sus
muchachos"? Ou fica satisfeito com uma regulação fofinha, tipo filme da
Disney?
Mas voltemos ao que disse sobre o jornalismo que se pratica.
Na verdade, doutor Montenegro, se bem me lembro, o próprio PSD, na oposição, já
brindou e se embebedou com este jornalismo apressado, de “auricular” ou lá o
que é. Ou estarei equivocado? Se não fosse esse jornalismo dos directos
televisivos eternos e insanos, do jornalismo de corpo presente ou pé de
microfone, dos casos e casinhos em pingue-pongue e servidos à saciedade com
frases bombásticas, se não fosse, enfim, esse jornalismo da espuma dos dias, do
fogo na pradaria, do comentário inflamado, no País onde um chefe de governo se
demite por causa de um parágrafo misterioso, um ex-ministro pode ser filmado em
pijama na rua a passear o cão e um líder parlamentar de taberna se ofende com o
que não devia - e, ainda assim, passa 50 vezes na TV - poderia garantir, com
toda a certeza, que teria chegado a primeiro-ministro? Ai quer sossego, agora?
Desculpe, não me leve a mal, mas faz lembrar aquelas vedetas
de telenovela ou certa aristocracia falida que adora aparecer nas capas das
revistas do coração quando o sucesso, os barcos e os amores navegam de feição,
mas se indignam com a invasão de privacidade quando tudo se desmorona. Lamento,
mas o pior do jornalismo também lhe vai tocar a si. O que era refresco no
governo dos outros agora é pimenta no seu.
Quanto ao bom jornalismo, continuará por aí. Com
inquietação, inquietação, que é o que se pede a quem faz bem o seu trabalho.
Mas, se quer mesmo mudar algo, em vez de dirigir o seu (pouco) subtil ataque
aos operários do jornalismo, talvez fosse de pegar no telefone – não o
censurava, digo-lhe – e chamar à pedra aqueles que, no topo da hierarquia, são
os engenheiros e arquitetos da luta pelas audiências e entregam de mão beijada
a agenda mediática aos tweets, à latrina das redes sociais e aos spin-doctors
(há exceções, claro!). Não se esqueça daquele antigo diretor de canal e jornal
que reconheceu o enorme contributo que o seu grupo de comunicação deu para
criar um líder político entre a “rua segura” e o “pé em riste”. Deu-lhe palco,
tempo de antena e criou um Frankenstein. Agora anda por aí e é um problema seu.
E nosso.
Pense: acha mesmo que os culpados deste ecossistema
mediático são os jornalistas "bravos do pelotão", os que contabilizam
mais horas de trabalho do que folgas, os que têm mais mês do que salário, os
escravos do clique, “do que está a bombar” e da produção jornalística de
fábrica têxtil?! Sabe, doutor Montenegro? Durante uma década, pelo menos,
recebi na redação onde trabalhava dezenas de alunos de jornalismo que me
procuravam para um conselho, ajuda num trabalho ou entrevista para uma investigação
académica. A esmagadora maioria era gente bem-intencionada, com os valores da
profissão no sítio. E tinham um sonho: contribuir, através do jornalismo, para
uma sociedade mais decente, uma democracia mais íntegra e poderes mais
escrutinados. Em síntese: melhorar as nossas vidas. Sabe como acabaram? Sabe
por que desistiram?
Era por aqui que deveriam ter começado as medidas que o seu
governo estudou durante este tempo. Pela dignificação do ofício, das redações,
do relevante serviço público que o jornalismo, a viver no osso, ainda presta à
democracia, tão ameaçada em muitos lugares por estes dias. Mesmo que o Estado e
os governos de turno não possam, como é óbvio, solucionar uma crise que é
mundial. Repare: o problema não é o Estado. É o estado a que chegámos. E as
suas medidas para a RTP não auguram nada de bom. O que fez foi apenas
concretizar o eterno sonho húmido de alguns players (é assim que se diz, não
é?) arrastando a empresa pública e os seus trabalhadores para um fim
“amigável”. Amigável para quem, senhor primeiro-ministro?
Quanto ao financiamento público, fale com o Joaquim Fidalgo,
meu camarada de ofício, fundador do Público. Talvez ele lhe possa fornecer os
dados que apresentou no nosso último congresso. Dizem o seguinte: raro, na
Europa, é não haver apoio estatal ao jornalismo. Há muitos modelos. É só
escolher. Ou fazer um mix. Outra dica (mas não conte a ninguém): até há países,
bem maiores do que o nosso, onde o financiamento sério a um bem público como o
jornalismo não é motivo de controvérsia política, veja lá… Acredite em mim: foi
o sistema - não aquele de que fala o doutor em Direito que só sabe dizer
“chega” e "vergonha" - que nos trouxe aqui. Um modelo
económico-financeiro falido, mas que repetimos, uma e outra vez. Um modelo de
sociedade que prefere gastar o pouco que tem em raspadinhas em vez de comprar
um livro ou um jornal. Um modelo de sociedade que vende a precariedade como
liberdade e os direitos como arqueologia. Um modelo de comunicação tik-tok que
se excita com a raiva, a polémica, o horror, para vender horas de “informação”
de forma tão pornográfica que até um telejornal deveria ter bolinha. Este
modelo, senhor primeiro-ministro, é que nos engaiolou. Já não somos livres, na
verdade. Somos alimentados, a horas certas, através da portinhola que daria
acesso ao sonho, mas não temos a chave. O pesadelo vive-se por dentro das
redações, das nossas vidas, dos nossos afazeres de ratinhos de laboratório,
cobaias de novas experiências de sucesso, sempre votadas ao fracasso.
Querem-nos cada vez mais produtos de aviário. Já não voamos, por vezes já nem
nos mexemos e pedem-nos cada vez mais ovos. Os horizontes que nos prometeram e
com que sonhamos - não mais do que viver dignamente e trabalhar com decência em
nome de uma sociedade melhor, mais escrutinada e justa - já não estão ao nosso
alcance.
Para que algum jornalismo que preza o seu nome ainda se faça
por estes dias muitos de nós esfrangalham as suas vidas pessoais, amarrotam os
melhores dias das suas existências, congelam a esperança, vão viver para longe
ou espremem-se num quotidiano miserável. Move-nos uma missão impossível, um
sentimento de pertença a algo que, para o cidadão comum, está em liquidação.
Sim, é essa a palavra: liquidação. Por isso, lamento dar-lhe a má notícia: tal
como um jornal datado, aquilo que anunciou só servirá, quando muito, para
embrulhar o peixe de amanhã. Talvez os líderes passem e o jornalismo fique, que
sei eu... Resistir é o nosso nome do meio. Às vezes escrevemo-lo em caixa alta
ou fazemos um título com ele. Mas se soubéssemos a força que temos, seríamos
manchete.
E aí, parafraseando o velho Almada, talvez Portugal percebesse de vez, caso a sua cegueira não seja incurável, a necessidade que tem de ser, de uma vez por todas, “qualquer coisa de asseado”. Pim!
Com os melhores cumprimentos
Miguel Carvalho
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