Escândalo na Guarda – Cenas do início do Séc. XXI (Crónica)
No Ano da Graça de 2005 houve na Guarda um escândalo pio, humano e divertido. Só surpreendeu o silêncio da comunicação social, que, tão ávida a espreitar pelo buraco da fechadura dos políticos, não se atreveu a explorar um escândalo religioso.
Junto ao antigo Hospital Distrital e, até há poucos anos,
local das Urgências, havia, e há, um lar de idosos. Ali esteva internada D.
Márcia, depois de enviuvar, carregada de anos e de haveres, até Deus ser
servido de a chamar à sua divina presença, como soe dizer-se.
No início dormia no excelente apartamento que comprara, ali
próximo, e passava o dia no lar, onde comia, com pessoas da sua idade. Depois
passou a pernoitar e ocupou um ótimo quarto que os rendimentos lhe permitiam
pagar.
D. Márcia não teve filhos. Era muito devota, temente a Deus,
amiga da missa, confissão e eucaristia. Rezava o terço desde o tempo em que a
irmã Lúcia o recomendou contra o comunismo a rogo da Virgem que poisava nas
azinheiras.
No lar, além do tratamento esmerado, tinha a solicitude
cristã de piedosas freiras que a assistiam nas rezas e nos caprichos – jovens
cuja beleza o hábito resguardava, mulheres espantosas a quem a fé não destruiu
a natureza.
A solidariedade cristã levou D. Márcia a emprestar-lhes a
chave do apartamento para pias reuniões que as esposas do Senhor certamente
fariam ‘ad majorem Dei gloriam’.
Uma noite D. Márcia foi a casa e, estupefacta, escutou
suspiros cuja origem a idade não lhe permitia recordar. Sentiu alegria no ar,
risos, satisfação, quiçá, gemidos de êxtase.
Perante a dúvida, primeiro, e a indignação, depois, não era
uma cerimónia litúrgica, o calvário recriado aos pulos ou o mês de Maria, com
coreografia, o que D. Márcia viu. Eram as freiras e mancebos desnudos, numa
cerimónia coletiva a evocar Adão e Eva no Paraíso. E a folgarem.
D. Márcia achou perdido o mundo e exigiu a chave, o provedor
da Misericórdia e a diocese transferiram as freiras para parte incerta, a
cidade murmurou, exultaram os ímpios e cochichou-se pelos becos.
O escândalo foi abafado, certamente para evitar perturbações
familiares aos homens casados e às freiras um despedimento sem justa causa.
In Ponte Europa, ed. Âncora, pág. 185 e 186 (2.º ed.) - (À venda nas livrarias)
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