SINGULARIDADES DO PROCESSO CONTRA SÓCRATES

É já habitual em Portugal haver crimes sem que ninguém seja culpado, sobretudo quando os possíveis culpados são pessoas bem colocadas. É o caso do processo dos submarinos do Dr. Portas – se é que foi sequer aberto um processo – em que houve um crime de corrupção, tendo até dois indivíduos sido condenados na Alemanha por terem corrompido alguém em Portugal, mas em Portugal é como se ninguém tivesse sido corrompido. É também o caso dos crimes de violação de segredo de justiça no processo de Sócrates: os jornalistas souberam coisas que só eram do conhecimento de um círculo muito restrito de pessoas ligadas à justiça, mas é como se nenhuma dessas pessoas lhes tivesse dito nada.

O que já é menos comum é haver culpados sem haver nenhum crime. Mas é isso que está a acontecer no caso Sócrates. O que é normal é o processo partir do crime para o culpado, isto é, perante a constatação de que foi cometido um crime, abre-se uma investigação para descobrir quem o cometeu. No caso Sócrates aconteceu exatamente o contrário: começou por se presumir que Sócrates era culpado, sem que ninguém soubesse de que crime; Sócrates foi detido e depois preso preventivamente; e agora a “investigação” consiste em arranjar um crime que lhe possa ser imputado!

É certo que os Senhores Juízes-Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa a quem coube julgar o recurso, para justificar a prisão do presumido culpado, disseram, em pitoresca metáfora, que ele vendia cabritos sem ter cabras. Quiseram certamente dizer, com essa fórmula jocosa, imprópria – salvo o devido respeito! – de um tribunal, que ele ostentava muito mais dinheiro do que aquele que seria normal que tivesse. Mas esse facto só por si não tem relevância criminal; só a teria se esse excesso de dinheiro proviesse do cometimento de um crime (roubo, corrupção, burla, peculato, etc.). Ora nenhum desses crimes está indiciado, e muito menos o estava na altura da detenção.

Trata-se pois de um processo tipicamente kafkiano, em que uma pessoa é culpada sem se saber de que crime. Mas com uma importante diferença: é que em “O Processo” de Kafka o protagonista, Joseph K., não foi sequer detido, enquanto Sócrates está preso há cinco meses! E tudo indica que preso continuará enquanto continuarem a procurar um crime de que possam acusá-lo!

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