Sobre as eleições italianas…
A vitória do ‘Movimento 5 Estrelas’ (M5E) nas eleições italianas, a subida considerável da coligação da Direita (Forza Itália) com forças extremistas (Liga Norte) e o colapso do Partido Democrático (PD), colocam pela enésima vez em debate a Itália como foco de disseminação e contágio para o resto da Europa de novas ideias, conceções, filosofias e, claro está, de políticas. Essa exportação é variegada e polivalente. Podemos – devemos- esperar tudo.
É em Itália - ou melhor na península itálica - que nasce, por exemplo, o movimento renascentista, que veio impiedosamente a enterrar o feudalismo, trazendo à ribalta novas ideias que influenciaram decisivamente a cultura, a organização social, a economia e alterou os contornos de dois grandes valores que habitam a modernidade: a política e a religião.
Cresceu à sombra do Renascimento uma das maiores conquistas civilizacionais que percorreu, com múltiplas turbulências, vários séculos (desde o séc. XIV à atualidade): O Humanismo.
Este conceito antropocêntrico e esta atitude racionalista, filosófica e ética, a par da revolução das artes, viriam a influenciar o Iluminismo que continua a ser um dos pilares contemporâneos da moderna civilização (dita ocidental).
A Renascença é muitas vezes referida como sendo uma ‘emergência florentina’. Na verdade, para muitos pensadores, Florença é o seu berço. A partir daí contaminou outras cidades toscanas e adriáticas (Siena e Veneza, p. exº.), conquistou o velho continente europeu e foi varrendo o Mundo. É o ‘signo irradiante’ dos movimentos italianos.
No pós I Guerra Mundial a Itália foi, também, o berço do fascismo. Mussolini funciona como um espalhafatoso epifenómeno do pensamento que vai sendo definido no final do século XIX com as ideias de Maurras, Sorel e, finalmente, o italiano Corradini. O Duce aparece mais tarde como um desiludido da vida política (militou no Partido Socialista Italiano) e defensor da cartilha autoritária, antidemocrática e nacionalista. Rapidamente estas ideias contaminaram a Europa e atingem, em primeiro lugar a Alemanha (o fascismo deve ser visto como um percursores do nazismo), mas também outros países, como a Espanha e Portugal. Trata-se, mais uma vez de uma sinuosa ‘exportação’.
Finda a II Guerra Mundial, e derrotado o nazi-fascismo, cresce, também em Itália, a doutrina demo-cristã. Mais um modelo político ‘inovador’ que pretendia fazer convergir a Direita com a chamada doutrina social da Igreja (transcrita da encíclica Rerum Novarum). Um modelo de corporativismo interclassista e adaptação do capitalismo aos tempos do pós-guerra.
Se o fascismo e o nazismo eram reações viscerais à Revolução de Outubro de 1917, a democracia- cristã foi um engodo delicodoce que visava contrariar o socialismo submetendo-se um enviesado escrutínio democrático onde os púlpitos e as sacristias funcionavam como baluartes propagandísticos e pervertiam os regimes. Acabou, também, por estender-se à Europa e América Latina. A democracia-cristã italiana haveria de colapsar no meio da mais profunda corrupção de que é um exemplo a situação vivida na cidade de Turim onde a maioria dos contractos públicos eram subsidiários de pagamento de comissões.
Em 1994, a famosa ‘operação mãos limpas’ tinha originado cerca de 3000 mandados de prisão, mais de 6.000 cidadãos estavam sob investigação, incluindo um milhar de empresários e outro milhar de administradores locais e mais de 400 parlamentares. Um autêntico regabofe. Pelo meio as sinuosas ligações à Mafia e os obscuros negócios como o Instituto de Obras Religiosas (vulgo Banco do Vaticano).
Nesse ano a DC obteve nas urnas cerca de 11% dos votos e colapsou. Pior só o Partido Socialista Italiano (PSI) que, estando também envolvido até à medula nos mecanismos de corrupção, se ficou pelos 2% dos votos.
O século XXI integra esta dinâmica histórica e, concomitantemente, uma profunda ressaca dos partidos institucionais (do 'sistema') dando espaço para a afloramento de ‘movimentos antissistema’. Beppe Grillo, o líder o Movimento 5 Estrelas, foi um homem do PSI que aproveita o vazio de ideias e os constantes enredos mafiosos e corruptivos para formar um autêntico ‘clube político’ contra o stablishment partidário, onde os parâmetros democráticos são um pormenor ou, maioria dos casos, estão ausentes.
Por outro lado, o (res)surgimento da Liga Norte de Itália é, de certo modo, a continuidade e o prolongamento do neofascismo à volta do Movimento Social Italiano (MSI) / Aliança Nacional nascido também dos escombros do fascismo mussoliniano e de início com uma dimensão regional.
No final do século XX - início do XXI - a Direita italiana, conservadora, tradicionalista e nacionalista encontrando-se numa situação de orfandade, em consequência da derrocada da democracia-cristã, volta a congregar-se à volta de Silvio Berlusconi (o Duce é substituído por Il Cavalieri). É uma fase em que o capitalismo decide dispensar atores contratualizados (intermediários) e o patronato decide assumir diretamente (dar a cara) na condução dos negócios políticos. Outra experiência falhada que acaba envolvida numa cascata de escândalos dos quais se salientam os fiscais.
Portanto, a nova resposta é o alinhamento de uma Direita ultraconservadora e tradicional, em decrepitude ética e política, com o nacionalismo fascistoide da antiga Liga Norte e o populismo antissistema e ‘artístico’ corporizado pelo Movimento 5 Estrelas. Este o caldo de cultura para um emergente frentismo de novo tipo.
Trata-se de um modelo abrangente acantonado sob um vasto espectro que vai da Direita conservadora à Extrema-Direita mais fascizante que colonizará todo o processo. Tem, todavia, uma alta capacidade contaminante e o pior será a Europa revelar-se desarmada e recetiva. O que também não é, historicamente, uma novidade. Mas uma trágica realidade para a história contemporânea europeia.
No início século XX foi um efémero tempo das Frentes Populares que perante as profundas convulsões sociais, do espectro da pobreza, do militarismo latente e de ameaças bélicas uniram os partidos de Esquerda (socialistas, comunistas e republicanos radicais). Esta convergência era então subsidiária de grande depressão americana de 1929-30.
Por outro lado, no terreno político, os movimentos fascistas espreitavam já uma oportunidade. São os exemplos desta situação os ocorridos, ambos em 1936, em Espanha na II República e na França de Léon Blum , entre outras.
As frentes de Esquerda não tinham uma grande homogeneidade ideológica e apesar das nacionalizações (sectores estratégicos) e das medidas de dignificação do trabalho acabaram por embotar as justas reivindicações dos movimentos políticos, sociais e sindicais. O grande capital não absorveu as mudanças e reagiu aparecendo a apoiar os movimentos fascistas. A democracia era para o grande capital uma ameaça e as ditaduras fascistas uma 'boa saída'.
O tempo das frentes populares não foi uma experiência duradoura (estável), nem feliz, nomeadamente em termos de resultados, mas a ‘orgânica frentista’ parece estar a replicar-se no presente em moldes diametralmente opostos aos do passado. É a vez da Direita nos seus diversos matizes (neofascista, ultraconservadora e aberrante).
Muitas das perturbações atuais que, na penumbra, ditam os resultados das eleições italianas entroncam-se na última crise capitalista (2008-….?) mas pretende-se ocultar esta relação. Hoje, é notório que o populismo e o neofascismo cavalgam as políticas austeritárias emanadas dos centros de decisão do capital (financeirização da política) que, mantendo-se às claras ou encapotadamente, continuarão a desestruturar as sociedades, a disseminar a pobreza e a abrir caminho a soluções messiânicas.
As eleições italianas introduzem, no presente, um problema grave que a Europa terá de ponderar e arranjar respostas. Enquanto isso não for obtido pairará sempre a possibilidade de, no presente, a Itália voltar a exportar estas soluções para além das fronteiras, repetindo um trajeto histórico desastroso semelhante ao do passado (recente), cujas lições os povos e os partidos políticos não parecem ter colhido os necessários ensinamentos.
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