A Ética, as nomeações familiares e o ‘sistema’…


O ruído que a Direita continua a levantar à volta do chamado ‘famillygate’ tem alguma razão de ser. Mas o que está errado nesta questão não é a mensagem que indubitavelmente colhe a provação popular mas o mensageiro. De facto, a Direita – eticamente – não tem autoridade para promover o escarcéu que está a alimentar.
Não é pertinente, porque já suficientemente chafurdado, enumerar os vastíssimos casos que enlameiam todos aqueles que ao longo do trajeto – e até ao presente - integraram o chamado ‘arco do poder’. Há situações para todos os gostos desde as nomeações diretas, às cruzadas, às encapotadas, acabando nas apadrinhadas.

Será urgente por cobro ao regabofe que contou com a colaboração dos tais partidos do ‘arco do poder’. Mas a questão não se confina a um estrito desvario da lógica de afinidades familiares onde, na verdade, se verifica que a acessibilidade aos cargos públicos está inquinada por vários motivos.
Em primeiro lugar está em causa o acesso ao exercício de funções públicas em condições de equidade para todos os cidadãos que, como é notório, sofre pelo caminho vários entorses e é um instrumento revelador das assimetrias e contradições existentes numa sociedade classista.

Ninguém desconhece o contraste entre as agruras de um cidadão que viva atrás do sol-posto que para ter um lugar ao sol, tem de fazer a escolaridade obrigatória em meio rural, palmilhar quilómetros para frequentar o secundário (numa escola que nem sequer consta de qualquer raking), submeter-se a uma severa triagem concorrencial (numerus clausus) de ingresso ao ensino superior e prestar provas de âmbito nacional e se tudo correr bem apressar-se-á a entrar no dito ‘mercado de trabalho’ e colmatar os dispêndios pessoais, familiares.
Em contraponto as facilidades do ‘menino-família’, urbano, cosmopolita que frequentou bons colégios, entrou para uma faculdade de excelência (em alternativa privada), frequentou os círculos partidários juvenis, participou em ‘universidades de verão’ e, finalmente, a par da licenciatura exibe um vistoso master business adquirido num país europeu ou nos States.

O que se está a passar com o ‘berreiro’ instalado é – em primeiríssima mão – o reflexo direto destas desigualdades (de percurso, de formação, de oportunidades, de ‘vida’). Será a espuma das coisas que sendo muito vaporosa contem pouca substância.
As nomeações governamentais quer sejam de origem endogâmica, do nepotismo, de favoritismo familiar e/ou dos carteis partidários são expressões de condições de desigualdade primárias que ainda fustigam a sociedade, mas que a Direita não quer dissecar, equacionar, discutir e muito menos resolver.
Acresce, ainda, a este quadro discriminatório as ‘cumplicidades dinásticas’, isto é, as ‘ricas famílias burguesas’ proprietárias de grandes empórios industriais e comerciais na maioria de transmissão hereditária, um pouco sob o regime de morgadio e que exercem uma influência política de bastidor, isto é, sem sujar as mãos, tendendo – apesar dos sobressaltos - sobreviver para além das mudanças de regime. São o exemplo paradigmático desta situação as grandes famílias financeiras - por exemplo a Espírito Santo - que não aparecem à luz da ribalta mas colocam nos cargos públicos decisórios os seus mais diletos e domesticados títeres.

A financeirização da economia, evolução que traduz a concentração e monopolização do capital, veio deslocar os poderes das famílias burguesas tradicionais para o sector bancário, embora continuem a existir muitas sobreposições nominais, mas o mecanismo para capturar os centros de decisão das políticas públicas permanecem incólumes e relativamente inalterados.

É óbvio que esta situação tem de ser modificada nas suas origens, isto é, na erradicação de fatores primários atentatórios da coesão social e, enquanto tal não ocorre, devem as arbitrárias (cirúrgicas) nomeações ser regulamentadas sob pena de estarmos a construir um aparelho de Estado fechado, emparedado, intransponível e, pior, um baluarte de discriminações pessoais, políticas, sociais e culturais.
O escrutínio do exercício das funções públicas desde a nomeação ao desempenho não deve ficar prisioneiro de investigações jornalísticas, passíveis de serem aproveitados de acordo com uma agenda política oculta (mas existente). Deve ser regulado e auditado permanentemente pelos cidadãos.

A Direita que sempre praticou estes ‘pecadilhos’ aparece, neste momento, como uma vestal ofendida e escandalizada e quer fazer, à custa do tema, uma enorme chicana política. Entrincheirou-se na posição de que o problema é ético e que não vale a pena regulamentar, como se a ética fosse um bem inacessível à globalidade dos cidadãos e fosse controlada por alguns privilegiados.
Ora a ética apregoada para esta situação e que busca, em última análise, o melhor estilo de vida e a postura mais saudável (para o coletivo) deve ser entendida como capaz de possuir uma vertente normativa. De certa maneira o que se passa com a ‘classe política’, partidária e nepotista entronca-se melhor no campo deontológico.
O problema é que a deontologia na área do desempenho político (e até do técnico) tende a ser atropelada por ‘utilitarismo’ imediatista, tão comum nas lógicas recrutadoras de dirigentes.
Quando chegamos ao ‘consequencialismo’ (fase seguinte do ‘utilitarismo’), isto é, ao apuramento de responsabilidades, é o triste espetáculo que temos assistido nas Comissões de Inquérito Parlamentares, onde ninguém se lembra de nada.

Não é compreensível a posição da Direita de que os problemas éticos – atualmente em análise e discussão em relação às nomeações governamentais - são inatingíveis e irreguláveis através de disposições legais normativas.
Para o cidadão comum todas as leis devem ter um basilar conteúdo ético sob pena de serem disposições avulsas e arbitrárias. A ética tem de estar presente em todos – mas mesmo em todos – aos atos advindos de um regime democrático republicano e, por maioria de razão, deve ficar expresso nas disposições normativas. Claro que a Ética (com maiúscula) transcende as disposições legais ordinárias e tem uma maior amplitude devendo reger todo o comportamento político, económico, social e cultural dos cidadãos e deste modo influenciar determinantemente a sociedade.
Uma coisa será a Lei, escrutinável e tornando as violações penalizáveis, outra a componente comportamental (individual ou de grupo) que influencia a globalidade das relações humanas e está sujeita a múltiplas interpretações, deliberações e consequências e que a Direita pretende hipocritamente explorar.

Existe um problema concreto com as nomeações para cargos públicos que não sendo uma questão nova, nem inédita, tem adquirido dimensões insuportáveis na medida em que desfoca o debate político sobre questões importantes que, dentro pouco tempo, vão a votos. Esta ‘manobra de diversão’ é pouco ou nada consentânea com o momento eleitoral que se avizinha porque esconde as diferentes propostas.

É tempo de acabar com tergiversações, avançar com legislação reguladora (código de procedimentos), não esquecendo a causa das coisas, isto é, donde e quando nasce todo este enviesamento.
E, também, vai sendo tempo de colocar aos portugueses e portuguesas as grandes opções em termos de política europeia.

Comentários

rui esteves disse…
FAMILYGATE.

Agora que parece que é crime contratar para assessor político um familiar, familiar é escolhido pela confiança política, será hora de chamar a atenção para as autarquias onde só entram os filhos, os sobrinhos e os afilhados do senhor presidente da CM e da sua rede de apoio nas eleições.

E este empregos nas autarquias não são lugares de confiança política.
São mesmo lugares na Função Pública. Mas a escolha para esses lugares toda a gente sabe como é cozinhada.

Baralhar e confundir as coisas, confundir lugares de confiança política com lugares na Função Pública é obra dos aldrabões do costume.
É obra dos hipócritas que em 2015 enganaram as pessoas com a devolução de uma migalha -a famosa devolução da sobretaxa sobre o IRS - e que impediram na prática o voto por correspondência de muitos milhares de emigrantes.
e-pá! disse…
Rui Esteves:

- Esse é outro problema ligado a este assunto: 'o caciquismo'.

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