SNS – básicas discordâncias...

Enquanto a Direita anda entretida com o ‘familygate’ e o País ‘assustado’ com a crise energética, está prestes a entrar no Parlamento, para discussão e votação, a nova Lei de Bases da Saúde.
Trata-se de um documento – basilar – para a definição de políticas de saúde para futuro.
Trata-se, também, de eliminar o ‘cavalo de Tróia’ que tem sido a versão cavaquista de 1990, revista em 2002 pelo barrosismo, de um conjunto enquadrado de políticas, que proporcionaram pelas suas aberturas, pelas suas indefinições e pela sua ambiguidade o ‘apagamento’ paulatino e progressivo do SNS em favor do sector privado e social.
Este será o diagnóstico final – e acertado - que informa a nova Lei e pretende definir as balizas necessárias para uma retoma deste sector público de acordo com os princípios fundacionais, deve ser o núcleo da discussão e o fator decisivo na necessária mudança. 
 
A ‘gritaria’ da Direita de que a nova Lei de Bases (ainda em ‘construção’) é um documento com elevada carga ideológica e que visa tão-somente reverter a Lei 48/90 link, onde através de artefactos ‘pragmáticos’ se abriu caminho à presente situação do SNS e o saldo está longe de ser positivo, será uma evolução normal da política.  De facto, é absolutamente estonteante que tendo o PSD (e o CDS) votado contra a criação do SNS venham arrogar-se do direito de serem os definidores do seu enquadramento e suas características. Trata-se da ‘estratégia do cuco' ave que tem por hábito pôr os ovos nos ninhos dos outros pássaros...
 
Será difícil perceber que a Lei de Bases da Saúde deve promover a consolidação do SNS como serviço público, universal e equitativo deixando à margem, por que complementares, as entidades do sector privado ou da área da economia social?
 
Por alguma razão a Direita exibiu despudoradamente uma pública adesão ao projeto coordenado por Maria de Belém Roseira. No essencial, porque na proposta de Maria de Belém se mantem o mesmo enquadramento normativo em relação às PPP, ao caracter concorrencial entre os vários sectores, à persistência das taxas moderadoras e se tende a sobrevalorizar tarefas preventivas cedendo terreno público aos privados ou aos emissários do sector social nas respostas aos cuidados dos doentes agudos, isto é, no mais visível da capacidade de resposta.
 
Noutro campo, mas também integrado no SNS, a entrega dos cuidados continuados ao sector social, isto é, às Misericórdias e instituições afins da órbita caritativa da Igreja, tomou proporções verdadeiramente escandalosas, configurando um quadro muito próximo de uma atividade monopolista.
 
As recentes ‘notícias’ vindas de Belém exibem o busílis desta questão. As ditas ‘fontes próximas de Marcelo’ revelam que o problema é as PPP (e o seu eventual fim) link
Na proximidade da sua discussão parlamentar a ‘ameaça de veto presidencial’ à proposta governamental é, politicamente, muito significativa. A longeva duração da atual Lei de Bases não se deve à suas liberalidades e promiscuidades público-privadas (antes pelo contrário) mas exclusivamente ao facto de nunca ter existido ‘uma maioria de Esquerda’, sólida, capaz de enfrentar as 'atividades rentistas' do sector privado neste campo.
Na verdade, o seu principal justificativo – a desorçamentação do investimento – com as novas regras de estruturação e contabilização do deficit, perde a primitiva razão de ser. O que se mantem é o mecanismo de transferências financeiras do Orçamento de Estado para entidades privadas ou de matriz social, sendo cada vez mais oneroso para o erário público os negócios que se abrem ao dito ‘mercado da Saúde’ (numa perspetiva ‘concorrencial’ do SNS).
 
Vários exemplos de modelos público-privados estão à vista e foram-nos vacinando ao longo do tempo. Para não deixar os cidadãos distraídos ou apáticos será necessário quantificar qual foi o seu custo global no ano transacto (2018): 2.000 milhões de euros ! link.
 
Desde a ‘grandiosa parceria público-privada' ocorrida nos séculos XV e XVI a histórica epopeia dos Descobrimentos que, no epílogo da mesma o saldo resultou no endividamento do então Reino (através da Companhia das Índias) aos usurários e prestamistas flamengos da feitoria de Antuérpia e nos levou à 1ª. bancarrota da conturbada história financeira nacional grassa a noção de que as parcerias podem ser (são?) drásticos assombramentos.  Não aprendemos nada com o passado cuja análise é sempre grandiosa em termos propagandísticos mas, no cômputo final, desastrosa.
 
As recentes parcerias rodoviárias que envolvem o Estado com a Brisa, Autoestradas do Atlântico, a Ascendi, Norscut, aos casos escabrosos da Lusoponte (e a ponte Vasco da Gama), o SIRESP, … (só para citar as mais públicas e notórias) vão pelo mesmo caminho.
 
As parcerias na saúde não contemplam um modelo diferente. Se tivermos em consideração a frase da Engª. Isabel Vaz, atual CEO da Luz Saúde  – “melhor negócio do que a saúde só o das armaslink – percebemos o que está em causa.
Na realidade, as parcerias público-privadas na saúde pretendem alienar cerca de mais de 20% dos Hospitais da gestão pública e as intenções incidem sobre vasto leque territorial: Loures, Cascais, Braga, Sintra, V. F. Xira, Algarve, Évora, Guarda, Gaia, Póvoa Varzim/Vila do Conde (só para referir os ‘apetites’ mais evidentes). Trata-se de um processo que configura, em termos bélicos clássicos, um cerco. Torna-se nítido que a rendição dos sitiados conduzirá ao saque, isto é, à destruição do SNS.
 
A Direita tudo fará para substituir o carácter financiador e prestador de cuidados inerentes à dimensão pública e universalista do SNS relegando para o papel de um vulgar pagador, com uma capacidade reguladora enviesada, colocando esta última função sob dois fogos: a prossecução de um subfinanciamento crónico e a perda de controlo da situação.
 
Um dos exemplos mais flagrantes da patranha que a Direita – nomeadamente o CDS - defende será a questão das Misericórdias e instituições afins muitas de índole paroquial e os cuidados continuados integrados. A posição preponderante já alcançada (70% das instituições no terreno?) significa que o Estado alienou este tipo de cuidados, comprometeu o carácter integrado e, simultaneamente, acomodou-se a uma situação indefensável já que, na prática, deixará de os regular.
Na verdade, as Misericórdias estão incluídas nos regimes de exceção definidos pela (e na) Concordata e a supervisão das suas atividades caberá ao bispado, ao cabido ou conselho presbiteral.
 
O Estado corre, assim, vários riscos: o maior será que fica nas mãos do sector social que, dada a sus posição hegemónica, não tardará a querer sentar-se à mesa do Orçamento da Saúde e abocanhar uma parte de leão. Um outro risco será o de ver os diferendos que possam virem a existir serem dirimidos num Tribunal Canónico. Uma situação intolerável. Para ser minimamente aceitável a proposta de Maria de Belém torna-se imprescindível a denúncia da Concordata. Sem este passo - que a Direita nunca aceitará - e a partir daí  as equilibristas e salomónicas medidas desenhadas no ‘relatório de Maria de Belém’ estarão completamente comprometidas.
 
Perante o sector privado a característica de universalidade que caracteriza o SNS nunca foi do apetite destes ‘novos players’ no mercado da saúde’. O dito mercado rege-se pela pura gestão dos negócios tendo em vista a retribuição imediata (lucro) e esta não será possível (nem lucrativa) em terrenos de baixa densidade populacional (já que a ‘freguesia’ escasseará) e, como sabemos, a universalidade no terreno dos negócios (para a atividade privada) só é compatível com processos monopolistas, onde o sector privado ditará todas as regras.
 
Deste modo, a tão falada (pela Direita) concorrência público-privada será um poderoso factor gerador de iniquidades. O Interior pobre, distante e mal-amado ficará arredado de colher benefícios de um sistema de saúde com características universais, equitativas e tendencialmente gratuito e criará situações discriminatórias e no limite formará uma legião de excluídos. E os cidadãos que aí residem, vítimas das assimetrias económicas e sociais e da escassez de oportunidades, ficarão cada vez mais desvalidos. Finalmente, um SNS aviltado, adulterado e amputado da sua eminente dimensão social, será uma longínqua recordação da 'Lei Arnaut', que a história (sempre escrita pelos vencedores), classificará como utópica.
É este o filme.

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