As eleições espanholas e a literária ‘Jangada de Pedra’…

As eleições espanholas são de uma crucial importância para Portugal.
Dificilmente os dois países escaparão às mudanças que se vislumbram no horizonte europeu e são uma consequência das alterações dos equilíbrios políticos mundiais, decorrentes do fim a II Guerra Mundial e mais recentemente da queda do muro de Berlim, isto é, de uma globalização emergente que levanta enormes desafios internos e cada vez mais questiona as remanescentes ‘atitudes hegemónicas' e imperiais.
 
Há sempre alguma (e curiosa) sobreposição de trajetória política quando de se compara Portugal e Espanha no último meio século. Não foi por acaso que existiram, concomitantemente, regimes ditatoriais paralelos (embora com génese distinta), uma democratização da vida política quase simultânea (neste caso com alguma dependência e contemporaneidade à volta do desaparecimento físico de ambos os ditadores) e como dessas circunstâncias agregadas, cresceram regimes assentes numa alternância bipartidária (também com características próprias).
 
Os resultados das eleições gerais espanholas apontam igualmente para a necessidade de criar uma solução governamental que deverá ser muito próxima da ‘geringonça’ (salvaguardando a diferente arrumação da Esquerda nos dois países e as crises autonomistas/independentistas em suspenso).
 
Na verdade, poderão ser complicadas as soluções governativas advindas das recentes eleições espanholas mas existe um facto indesmentível, que foi hipervalorizado precocemente e propalado pela Direita no anterior ato eleitoral (2016) e que preconizavam o soçobrar da Esquerda em Espanha. As notícias da morte da Esquerda espanhola - um pouco ao estilo da célebre frase de Mark Twain - revelaram-se manifestamente exageradas.
 
Acresce ainda que existem múltiplas sobreposições que vale a pena elencar e dissecar. Durante a última crise financeira os dois países foram severamente atingidos no campo social, económico e, ambos, foram fustigados por medidas austeritárias idênticas impostas de fora (semelhantes mas de âmbito distinto) já que revelaram graves insuficiências e olímpico descontrolo no sistema bancário.
Resta saber se a saída destes sincronismos políticos se fará pela mesma porta.
De substancialmente diferente existe a circunstância de o regime espanhol não viver sequelas de uma guerra colonial como a que atingiu Portugal (e que o fascismo espanhol soube evitar) mas, mesmo aí, há algumas desfasadas coincidências já que, como todos conhecemos o franquismo, decorre de uma fratricida confronto interno, no caso vertente, a guerra civil.
 
A extrema-direita neofranquista rege-se pela suspeita (contra os imigrantes), cultiva a mentira histórica dos ‘vencedores’, venera ‘verdades tridentinas’ (contra a liberdade religiosa), promove uma fanática ideia de ‘reconquista’ à volta do ultramontanismo em busca uma ‘legitimidade guerreira’, claramente franquista, esvaziada no acordo constitucional de 1976 trave mestra de uma ‘transição’ possível. trata-se de uma situação que muitos julgávamos ultrapassada no presente e exorcizada em termos de futuro e que a nova arrumação da Direita espanhola veio ressuscitar.
Muito do que a Direita espanhola (partindo dos neofranquistas do Ciudadanos, passando pelos passadistas do PP até aos ultrafalangistas do Vox), vem no presente a terreiro defender, esteve também contido na charge patrioteira alimentada pelo Estado Novo – ‘Portugal Uno e Indivisível’, que, como sabemos, Abril 74 e o futuro, vieram desmentir.
 
Embora as presentes eleições em Espanha sejam legislativas e a curto prazo tenham lugar as europeias, é muito significativo que, no presente, pouco ou nenhum realce tenha sido dado aos problemas europeus.
Na verdade, este é um exemplo de que a UE é, ainda, um problema exterior ou, pior, irrelevante, e a dita União pouco pesa na política nacional, embora no contexto europeu seja de esperar da Extrema-Direita as piores diatribes nacionalistas marcadamente antieuropeias.
Mas uma outra coincidência ibérica verifica-se em Portugal onde, na atual campanha eleitoral para as europeias, a discussão política se centra sobre o ‘familygate’, os incêndios de 2017, a derrocada da estrada de Borba, etc. (a tal ‘política de casos’) deixando de fora importantes problemas europeus com incontornável reflexo nos Estados integrantes da UE, como são, p. exemplo, a reforma das instituições europeias, a política monetária do BCE, a crise económica subsidiária à globalização neoliberalizante, a desaceleração do crescimento económico europeu (e mundial) os protecionismos comerciais (estimulados pela Administração Trump), etc.
 
A Direita - tanto em Espanha como em Portugal - agita permanentemente o espantalho de novas crises que anuncia avizinharem-se sempre que não está no poder (e que imputa aprioristicamente a responsabilidade à Esquerda) mas nada fala - ou propõe - sobre o fracasso das políticas de austeridade que nos (tanto em Portugal como em Espanha) foram impostas, do contínuo esmagamento de diretos sociais das forças do trabalho e da desvalorização dos salários e, mais globalmente, do esvaziamento das políticas sociais, à pala do neoliberalismo.
Nada disto existe para a Direita, reacionária e passadista que só consegue valorizar um passado tenebroso e realçar um exacerbado nacionalismo que só - em boa verdade - só conduziu a cíclicas saídas bélicas, isto é, guerras. 
 
Estas similitudes fazem recordar o livro de Saramago a ‘Jangada de Pedra’. A Extrema-Direita espanhola (Vox) não é exactamente sobreponível a Joana Carda, protagonista do romance de Saramago que, com um ramo de negrilho (ulmeiro), esboça traçar uma linha divisória (o tal ‘cordão sanitário’ tão debatido na campanha eleitoral) entre os territórios ibéricos e a Europa e, não tendo ainda desenhado (nem querendo por razões tácticas) uma fronteira delimitativa entre um franquismo enfermo mas remanescente (construído sobre os escombros de uma visão passadista) e uma ampla plêiada de países europeus, genericamente (ainda) democráticos. 
 
De facto, a fragmentação da Direta revelou as suas convergentes nuances e mostra o redobrado esforço (conjunto, note-se) pela promoção de um regresso ao passado nacionalista, falangista e ultramontano, subsidiário das mais execráveis circunstâncias políticas sociais e humanitárias.
 
Ontem, felizmente, os espanhóis rejeitaram este rumo preconizado pela Direita espanhola. Apareceu, no contexto parlamentar, a Ultra-Direita saudosista e franquista através do Vox, mas o mais importante e contraditório parece ser PP - o encoberto herdeiro do franquismo - que se afundou sob a batuta de um ‘aznarismo’, não muito distante do retrógrado falangismo (de Primo de Rivera).
A disputa nos terrenos da Direita espanhola parece consignada a coexistir entre um franquismo decrépito e um neo-falangismo desacreditado, com o Ciudadanos embevecido a assistir e aparentemente a ‘engordar’.
 
Finalmente, a fracturante deriva da Ibéria, perante uma Europa em crise, vai ensombrar, nos tempos próximos, os debates eleitorais, aproximando-se do contexto que o romance de Saramago literariamente levanta e tão brilhantemente explana. De resto, o que o romance de Saramago realmente exalta é a ‘desconstrução’ de velhas concepções ou, se quisermos, de ‘retrógradas concepções políticas’ …

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