Lourinhã – A ditadura, os serventuários e a memória (Crónica)

Em 1963 cheguei à Lourinhã, ameaçado de demissão por um lacaio do regime, Manuel da Silva Mendes, que de adjunto do Diretor Escolar de Castelo Branco havia de chegar a Diretor Escolar de Portalegre e presidente da respetiva Câmara Municipal, para acabar administrador na Casa da Moeda, sinecura que o Curso do Magistério Primário e o zelo salazarista lhe reservaram, à falta de currículo e de preparação académica adequada.

Cheguei diretor da escola masculina, a Fernanda era agregada e mulher, defeitos que só um era remissível e em locais que a afastariam do marido. Fui logo nomeado Delegado Escolar porque a titular carregava o pecado original da inferioridade de género que lhe garantia a exoneração do cargo à chegada do primeiro professor.

Em outubro, primeiro mês do ano letivo, houve exame de adultos, como sempre, e por mero espírito misógino, a Conceição, que era ainda «Delegado», foi nomeada vogal do júri cuja presidência me foi atribuída. Uma conversa nossa originou a falta dela no júri e a sua troca por outra colega. Nem a hierarquia valia perante a superioridade de género, e a competência não vinha ao caso.

Permita-se ao cronista elogiar a colega, de grade classe, a que me ligou forte amizade, que se estendeu ao marido e a uma prima cuja afeição deu um salto dialético que podia ter mudado a vida de ambos.

Os exames de adultos eram uma farsa com que o salazarismo pretendia baixar o nível de analfabetismo que nos destacava, em conjunto com a miséria, a mortalidade infantil e a materno-fetal, a nível europeu. Os exames da 3.ª e 4.ª classes passaram a ser necessários para fazer a limpeza de edifícios públicos ou obter passaporte, o primeiro, e para a carta de condução o segundo.

Os meus 20 anos, que nem a maioridade concediam, não permitiam reprovar a senhora que varria o tribunal ou o carpinteiro que trabalhava na Câmara Municipal, decisão que os exonerava das funções. Nunca alguém chegou tão longe sabendo tão pouco. Entre a crueldade da reprovação e a aprovação indevida optei sempre pela segunda, no que as colegas sempre me acompanharam.

Um dia apareceu-me o adjunto do diretor escolar a fiscalizar os exames. Ofereci-lhe a presidência do júri, como se ele a não pudesse avocar, se o entendesse, o que recusou.
A prova escrita começava pelo ditado e as palavras eram ditas de forma estranha para impedir que, por exemplo, a palavra «comer» aparecesse escrita com «u». Além disso, as palavras mais difíceis eram escritas no quadro preto com o giz. O adjunto Carvalhão chamou-me a atenção de que não era permitido escrever palavras no quadro ao que lhe respondi que era assim que fazia na sua ausência e que, se achava mal, me substituísse. Que não, que continuasse, e a cada observação desafiava-o a presidir ao júri pois tinha trabalho da Delegação Escolar para fazer.

Acabado o ditado, com o adjunto Carvalhão às voltas pela sala, veio dizer-me que havia várias reprovações e foi-me indicando quais. Aquela senhora, também? – perguntei-lhe, ao que ele anuiu. Bem, agora é que o Sr. adjunto vai assumir a presidência do júri pois aquela senhora é mãe do presidente da Câmara, tem um Mercedes comprado e precisa da carta, não faltará quem diga que é vingança política de um opositor ao regime.

O presidente da Câmara era meu amigo, até me perguntava se eu era tão perigoso que justificasse as constantes solicitações para me vigiar. A vida extramatrimonial tinha-nos aproximado em cumplicidades que não são relevantes para o caso e que me permitiam saber quando a pide ia colher informações a meu respeito. Seria incapaz de me dizer o que quer que fosse se a mãe reprovasse no exame. Mas disso não podia saber o adjunto Carvalhão que ficou pálido quando ouviu que a alegada reprovada era mão do autarca.

Vi a aflição do homem, como o terreno lhe fugia sob os pés, como se tinha arrependido de ter ido à Lourinhã, com tantos concelhos que o distrito tinha, e como não sabia sair da situação que criara. Lá se recompôs e disse-me que ia sair e que não me perguntaria pelos resultados do exame, se lhe desse a honra de almoçar com ele, esperar-me-ia no restaurante da residencial onde eu estava hospedado, uma residencial excelente e única.

Os supostos reprovados tiveram o apoio do júri e, entre os três, lá pusemos toda a gente em condições de ir à oral, depois de completarem as provas com a redação e aritmética.
Foi anunciado com pompa que não havia reprovações e lidos, em voz alta, os nomes dos 8 candidatos que prestariam a prova oral no dia seguinte.

Ao almoço lá estava o adjunto Carvalhão à minha espera e quando fui informar os meus companheiros de mesa, o juiz, o delegado do Ministério Público e o conservador do Registo Predial, de que almoçaria noutra mesa porque tinha comigo o adjunto do diretor escolar, o juiz olhou para os outros e perguntou-me porque não o convidava a partilhar a nossa mesa. Foi assim, na minha companhia, que o adjunto Carvalhão almoçou com os magistrados e o conservador do Registo Predial antes de seguir para Lisboa, aliviado e a tecer loas a meu respeito, junto do diretor.

Três dias depois, Portugal contava com mais 24 diplomados, nas estatísticas, e o adjunto Carvalhão não voltou a comparecer nos exames de adultos, na Lourinhã.

Comentários

e-pá! disse…
Interessante e elucidativa crónica.
Embora nunca me tenha dedicado ao ensino passei, em circunstâncias diferentes, por um 'caminho' idêntico (mas sem 'inspectores').
Em Moçambique, no cumprimento do serviço militar obrigatório, 'assinei' uma dezena de certificados de habilitações escolares a soldados que necessitavam deles para tirar a carta de condução indo de encontro às perspectivas de 'mudança de vida', depois de mais de 2 anos de sacrifícios e privações nas ex-colónias.
Como está explícito na crónica não o fazer seria uma 'crueldade'.
Coisas da vida...

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