Tempos do Café Martinho (Crónica)
Não sei se resultaria hoje o truque que há quase quatro décadas era de uma eficácia surpreendente.
À saída do metropolitano, no Rossio, previamente combinados, alguns jovens parávamos entre os transeuntes e perscrutávamos fixamente um qualquer ponto no horizonte. Pouco depois, enquanto nos raspávamos, ficavam dezenas, mesmo centenas, de mirones a olhar sem saber para onde nem descobrir porquê, a atrapalhar a circulação e a atrasar o regresso a casa. Era um gozo dos diabos, que arreliava a polícia e danava quem tinha pressa. Depois era o encontro no Café Martinho, sem nunca aludirmos ao facto, não fosse o diabo ou a polícia descobrir.
Começámos a encontrar-nos no mês de Maio de 1966, ao fim da tarde e após o jantar. Descíamos à cave onde, à chegada, havia palavras cruzadas para resolver no Diário de Lisboa, antes de nos envolvermos em intermináveis conversas sobre a guerra que nos afligia e a tragédia do regime que teimava em sobreviver. Na mesa ao lado dois senhores – mais tarde saberíamos que eram dois senhores de grande qualidade –, Augusto Abelaira e José Gomes Ferreira, pediam para ouvir as anedotas e os comentários.
O café, delicioso, custava vinte e cinco tostões, servido por um simpático funcionário com uma mandíbula proeminente a quem, por via disso, apelidámos de Queixoso.
A um canto, estacionava um casal, ele a rondar os cinquenta anos, ela deliciosa nos vinte e tal, sóbria nas palavras e na saia, exuberante no sorriso e no decote, ladina. O João Rui dizia que era muito peitoral, referindo-se às saliências deslumbrantes que atraíam olhares e desejos enquanto o Miranda, camoniano, descobria um ilustre peito lusitano. O Leonel chamou-lhe "amiga do peito", tendo logrado geral aceitação. E assim ficou. Olha, a Amiga do Peito já chegou, dizíamos uns aos outros, ainda na rua, a aguçar o apetite da entrada. A ele apelidámo-lo, sem discussão, de sr. Felizardo, enquanto murmurávamos, quanto mais velha é a besta mais viçoso tem de ser o pasto, evocando um dito brejeiro, quiçá um axioma biológico.
A Amiga do Peito e o sr. Felizardo sentavam-se na mesa do vão das escadas que desciam para a cave. Ela, de costas para a parede, mirava quem chegava e ria-se amiúde, aumentando o horizonte visual sob a blusa e a concupiscência de quem descia. Ele dava-lhe a mão, ela prometia-lhe mais, com o olhar.
Há-de ter sido um quadro assim a inspirar António Aleixo: «Homem velho e mulher nova / dá-nos sempre a impressão / do inverno a entrar na cova / com a primavera pela mão».
A mesa ao meio da sala estava habitualmente disponível para o grupo, milicianos consumidos por um ódio violento a Salazar e à tropa e pelo medo da guerra colonial. Ao lado, com lugar cativo, Abelaira sorria por entre o fumo do cachimbo às diatribes dos jovens e trocava olhares cúmplices com o Gomes Ferreira, ambos a adivinharem amanhãs de júbilo num país de silêncios e tristeza. Pressentiam-se esbirros, raramente identificados, mas a míngua de carne para canhão, vital para a ditadura, conferia-nos alguma imunidade.
Havia na tertúlia um indivíduo já regressado da guerra, interessante e culto, cinéfilo e melómano, que desaparecia periodicamente e voltava sempre. Apresentado pelo Leonel, dizia-se jornalista e pintor de arte, jantava uma bica quando a vida lhe corria pior e o bife à Martinho nos dias melhores. Odiava o trabalho com o vigor de quem não tolerava a maldição bíblica. Soubemos que o “jornalista” se limitava a levar os números premiados da lotaria à redacção de um matutino e, como pintor de arte, fazia cartazes que exornavam as montras dos restaurantes da baixa "Hoje há grão com mão de vaca", "Feijoada à moda da casa", "Caracóis" e outras iguarias cujos anúncios, desenhados a escantilhão, eram da sua lavra e o pagamento andava sempre atrasado ou cobrado em géneros, por necessidade.
Lentamente, durante dezassete meses, o grupo foi definhando por uma estranha moléstia que o dizimou. Um a um a mobilização desfez a tertúlia. Como no poema de Brecht, «quando não havia mais ninguém, levaram-me a mim e quando percebi já era tarde».
Depois de vinte e seis meses de ansiedade e medos, de que ainda é cedo para falar, aconteceu o regresso. O Café Martinho foi a primeira âncora a procurar, o sinal que confirmaria a chegada. O edifício estava lá, de frontaria lavada, até, mas do Café nem rastos. A delegação de um banco tomara conta do espaço. O Abelaira e o Gomes Ferreira mudaram de poiso, o Queixoso andaria a servir cafés algures, a Amiga do Peito a fazer as delícias do sr. Felizardo ou doutro, os jovens da tertúlia, dispersos, a fazer pela vida no sector terciário. Só os esbirros, espalhados por todo o lado, cada vez mais numerosos e odiados, me devolveram a tranquilidade. De certo modo foram eles que me confirmaram que regressara ao sítio certo, com o país errado.
À saída do metropolitano, no Rossio, previamente combinados, alguns jovens parávamos entre os transeuntes e perscrutávamos fixamente um qualquer ponto no horizonte. Pouco depois, enquanto nos raspávamos, ficavam dezenas, mesmo centenas, de mirones a olhar sem saber para onde nem descobrir porquê, a atrapalhar a circulação e a atrasar o regresso a casa. Era um gozo dos diabos, que arreliava a polícia e danava quem tinha pressa. Depois era o encontro no Café Martinho, sem nunca aludirmos ao facto, não fosse o diabo ou a polícia descobrir.
Começámos a encontrar-nos no mês de Maio de 1966, ao fim da tarde e após o jantar. Descíamos à cave onde, à chegada, havia palavras cruzadas para resolver no Diário de Lisboa, antes de nos envolvermos em intermináveis conversas sobre a guerra que nos afligia e a tragédia do regime que teimava em sobreviver. Na mesa ao lado dois senhores – mais tarde saberíamos que eram dois senhores de grande qualidade –, Augusto Abelaira e José Gomes Ferreira, pediam para ouvir as anedotas e os comentários.
O café, delicioso, custava vinte e cinco tostões, servido por um simpático funcionário com uma mandíbula proeminente a quem, por via disso, apelidámos de Queixoso.
A um canto, estacionava um casal, ele a rondar os cinquenta anos, ela deliciosa nos vinte e tal, sóbria nas palavras e na saia, exuberante no sorriso e no decote, ladina. O João Rui dizia que era muito peitoral, referindo-se às saliências deslumbrantes que atraíam olhares e desejos enquanto o Miranda, camoniano, descobria um ilustre peito lusitano. O Leonel chamou-lhe "amiga do peito", tendo logrado geral aceitação. E assim ficou. Olha, a Amiga do Peito já chegou, dizíamos uns aos outros, ainda na rua, a aguçar o apetite da entrada. A ele apelidámo-lo, sem discussão, de sr. Felizardo, enquanto murmurávamos, quanto mais velha é a besta mais viçoso tem de ser o pasto, evocando um dito brejeiro, quiçá um axioma biológico.
A Amiga do Peito e o sr. Felizardo sentavam-se na mesa do vão das escadas que desciam para a cave. Ela, de costas para a parede, mirava quem chegava e ria-se amiúde, aumentando o horizonte visual sob a blusa e a concupiscência de quem descia. Ele dava-lhe a mão, ela prometia-lhe mais, com o olhar.
Há-de ter sido um quadro assim a inspirar António Aleixo: «Homem velho e mulher nova / dá-nos sempre a impressão / do inverno a entrar na cova / com a primavera pela mão».
A mesa ao meio da sala estava habitualmente disponível para o grupo, milicianos consumidos por um ódio violento a Salazar e à tropa e pelo medo da guerra colonial. Ao lado, com lugar cativo, Abelaira sorria por entre o fumo do cachimbo às diatribes dos jovens e trocava olhares cúmplices com o Gomes Ferreira, ambos a adivinharem amanhãs de júbilo num país de silêncios e tristeza. Pressentiam-se esbirros, raramente identificados, mas a míngua de carne para canhão, vital para a ditadura, conferia-nos alguma imunidade.
Havia na tertúlia um indivíduo já regressado da guerra, interessante e culto, cinéfilo e melómano, que desaparecia periodicamente e voltava sempre. Apresentado pelo Leonel, dizia-se jornalista e pintor de arte, jantava uma bica quando a vida lhe corria pior e o bife à Martinho nos dias melhores. Odiava o trabalho com o vigor de quem não tolerava a maldição bíblica. Soubemos que o “jornalista” se limitava a levar os números premiados da lotaria à redacção de um matutino e, como pintor de arte, fazia cartazes que exornavam as montras dos restaurantes da baixa "Hoje há grão com mão de vaca", "Feijoada à moda da casa", "Caracóis" e outras iguarias cujos anúncios, desenhados a escantilhão, eram da sua lavra e o pagamento andava sempre atrasado ou cobrado em géneros, por necessidade.
Lentamente, durante dezassete meses, o grupo foi definhando por uma estranha moléstia que o dizimou. Um a um a mobilização desfez a tertúlia. Como no poema de Brecht, «quando não havia mais ninguém, levaram-me a mim e quando percebi já era tarde».
Depois de vinte e seis meses de ansiedade e medos, de que ainda é cedo para falar, aconteceu o regresso. O Café Martinho foi a primeira âncora a procurar, o sinal que confirmaria a chegada. O edifício estava lá, de frontaria lavada, até, mas do Café nem rastos. A delegação de um banco tomara conta do espaço. O Abelaira e o Gomes Ferreira mudaram de poiso, o Queixoso andaria a servir cafés algures, a Amiga do Peito a fazer as delícias do sr. Felizardo ou doutro, os jovens da tertúlia, dispersos, a fazer pela vida no sector terciário. Só os esbirros, espalhados por todo o lado, cada vez mais numerosos e odiados, me devolveram a tranquilidade. De certo modo foram eles que me confirmaram que regressara ao sítio certo, com o país errado.
Comentários
Ó desanimado e se faltassem três...
Acredito que sintas saudade desse tempo. Também figuras na Crónica e eras dos que acreditavam no fim da ditadura.
Afinal, tínhamos razão.
Talvez o país merecesse melhor, mas somos hoje mais livres e, sobretudo, vivemos sem medo.