As Religiões e a Liberdade II

Eu, não sendo religioso, discordo do Carlos em alguns pontos da sua análise das três grandes religiões monoteístas.

Quanto ao judaísmo, refere e bem que não é uma religião que pratique activamente o proselitismo religioso. Tal deriva do carácter etnocêntrico dessa religião, que encara a sua etnia como sendo o povo eleito. Os únicos casos de conversão ao judaísmo que costumam ser reconhecidos pelo Beit Din (tribunal religioso de Israel) são de pessoas que conseguiram provar a sua etnia judaica jure sanguinis, provando que os seus antepassados foram levados à apostasia em determinado momento histórico.

Não concordo nomeadamente com a interpretação do islamismo como um "plágio" do cristianismo. Ora, o cristianismo procurou ser, na sua fase inicial, uma "evolução na continuidade" do judaísmo, procurando saneá-lo de alguns aspectos menos positivos da sua liturgia, e procurando transfigurar Elohim, o Deus judaico, de Deus criador e destruidor, ex machina, numa divindade mais interventiva e generosa (o conceito de amor). Foram várias vicissitudes que levaram a ideia originária do Cristianismo, essencialmente monoteísta, a absorver elementos ocidentais, nomeadamente através do sincretismo que se operou através da absorção dos deuses pagãos e da atribuição das suas "pastas" a santos mártires da igreja. Também à iconoclastia inicial se sucedeu a veneração de imagens, numa forma de adaptação desta igreja às exigências de um grupo de fiéis de diferentes etnias que se alargou muito depressa. O conflito entre iconoclastas (cristãos levantinos e orientais) e adoradores de imagens (cristãos gregos e ocidentais) perpassou toda a história do império bizantino, por vezes com episódios sangrentos, e que esteve na génese da reforma protestante. Para além de tudo isso, o cristianismo criou toda a espécie de dogmas e mistérios, muito frequentemente de enorme complexidade, tais como o da santíssima trindade, que levaram a profundos cismas (primeiro o cisma igrejas monofisitas orientais, depois o grande cisma entre igreja católica e ortodoxa por causa da tradução do filiusque).

O islão aparece também como uma evolução na continuidade, propondo-se como um monoteísmo puro (sem divindades de segundo grau), síntese dos dois monoteísmos anteriores, que segundo o Corão, devem ser respeitados (os profetas respeitados, e os seus fiéis- "ahl al-kitab" protegidos pelos muçulmanos). Existe aí também uma necessidade de adaptação a novos fiéis, procurando erradicar hábitos religiosos pagãos das tribos de pescadores e beduínos das arábias (iconoclastia pura, proibição de adoração de génios, proibição da representação de imagens humanas ou de animais, proibição de práticas religiosas ou de meditação através da êxtase- daqui também a proibição do álcool e de substâncias narcóticas).

Parece-me que cada uma das grandes religiões monoteístas procurou, à sua maneira, e de acordo com as suas necessidades, adaptar o elevado grau de abstracção teológica do monoteísmo à sua comunidade de fiéis. O Islão aparece, entre as outras duas, como a mais abstracta, não contando com quaisquer divindades intermédias, a mais simples (sem mistérios ou dogmas teológicos) e a mais descentralizada (não existindo uma estrutura religiosa organizada em termos canónicos, ainda que por vezes os poderes seculares tenham criado estruturas hierárquicas no clero islâmico: historicamente o califa de Bagdade e depois a Sublime Porta no império otomano assumiram as funções de Sheikh-al-Islam, mais ou menos o equivalente a papa). A simplicidade teológica, que se resume a cinco simples "pilares da fé" (profissão de fé exclusiva em Deus, oração cinco vezes ao dia, esmola aos desfavorecidos, jejum do Ramadão e peregrinação a Meca), é um dos factores que favorece a expansão do Islão.

Do aduzido discordo do Carlos. O Islão não é um plágio, mas um desenvolvimento das religiões anteriores, uma tentativa de síntese, e uma adaptação às realidades locais. Por outro lado, entendo ser uma religião que se pode perfeitamente conciliar com a modernidade, com o laicismo e com a ciência.

Frequentemente existe um alinhamento da opinião pública com a teoria do "choque das civilizações" de Huntington, entendendo-se o Islão como religião intrinsecamente reaccionária, anti-modernista, anti-científica e opressiva. Ora, entendo que o Islão não é nem mais nem menos opressivo ou obscurantista que as outras religiões. O olho por olho e dente por dente, a lapidação dos adúlteros ou a submissão da mulher tanto estão presentes no Corão como na Torah, no Talmud ou no Novo Testamento, todos textos redigidos antes do Iluminismo. Se parte significativa do mundo islâmico actual é conservador, obscurantista, medieval, oprimido, tal deve-se mais a circunstancialismos de ordem económica e social do que meramente ao factor religioso. Afirmo isto baseando-me nos seguintes argumentos:

1) na época áurea do islamismo (Séc. X a XIV), a civilização islâmica era a mais próspera economicamente e a mais avançada científica e tecnologicamente, gozando de mais paz e estabilidade quando comparada com a civilização cristã da alta idade média (a Idade das Trevas).
2) Existem, nos dias de hoje, sociedades predominantemente islâmicas, com razoável prosperidade económica, índices médios e até altos de desenvolvimento social e humano, e onde se entende o Islão de forma moderada (Malásia, Singapura, Turquia).

Não é o Islão que oprime, são as duras condições sócio-económicas que conservam o poder nas mãos de alguns que, em seu nome, com o seu pretexto e com a sua interpretação dele oprimem. O que é mau é o fundamentalismo e o radicalismo, seja ele judaico, cristão, islâmico, budista ou pagão. Outro facto incontornável, e que muitos na Europa tentam negar, é o facto de o Islão ser parte indissociável e indelével da identidade histórica deste velho continente, e que o diálogo inter-religioso é imperativo. Desde o século IX que existem muçulmanos na Europa, e cada vez haverá mais. Interessante para o leitor poderá ser a Declaração de Istambul de 2006 sobre a presença do Islão na Europa, e o papel dos europeus muçulmanos na participação política e cívica.

Comentários

Anónimo disse…
bom... Albânia e Bósnia são os 2 únicos países europeus(excluindo os turcos) com maioria islâmica.... e ambos países não tem fama de intolerantes....
A questão dos países considerados "xiitas"....
Pq o Irã sofre inúmeras críticas ácidas da MASSMEDIA, ao contrário da A.Saudita?? Pq o Irã não segue o "Consenso de Washington", ao contrário dos sauditas...
ou seja... a mídia usa pretexto religioso pra atacar Irã....quando na verdade quer atingí-lo politicamente.
e-pá! disse…
Interessante a reflexão de Rui Cascão, que não valoriza só os aspectos visíveis (e digamos que intoleráveis das religiões) mas tenta entrar na profundidade das causas.

Na realidade, existindo - como todos sabemos - fundamentalismos nas 3 religiões "reveladas", há uma nítida enfatização do actual atraso civilizacional do Islão, o que estará a condicionar diversos comportamentos presentes e, em minha opinião, será o cerne que bloqueia e questiona toda a sua (mais que necessária) evolução para a modernidade.

Na verdade, todo o fundamentalismo islâmico cresce desde 1945, i.e., depois do fim da II Guerra, onde os povos muçulmanos - excluindo os beneficiários dos petrodólares - entraram na mais profunda decadência, por arrasto, lançou milhares de mulçulmanos na senda do fanatismo e no virar de costas à evolução religiosa, social e científica.
Perdem aí todas, ou quase todas, as referências, filósofico, morais e políticas, necessarimente, diferentes das ditas "ocidentais", mas genuínas.
Daí para a frente, grande número de organizações islâmicas (para além das religiosas stricto sensu) rejeitam a modernidade, e voltam para as crenças pré-islamicas, abandonando o sincretismo e tudo o que é eclético.
Uma tragédia a que o Mundo ocidental assistiu indiferente.

Então, depois do 11 de Set, foi o êxtase islamofóbico.
Tudo o que rescenda a Islão era a personificação do Mal, do Falso, do Reprovado, do Bárbaro e das Trevas.
Não é preciso saber muito da História das Religiões para "sentir" que existiu uma dialética que foi perturbada ou, se quisermos, prevertida.

De uma lado, a dominação e a intervenção política e militar prepotentes, o controlo geopolítico absoluto, a subjugação da identidade cultural, etc.
Do outro, o sentimento de fraqueza, da humilhação, do atraso, da opressão, da derrota, da revolta.
No meio, onde se posiciona a liberdade? Ou a confrontação dialética retirou-lhe, na prática, todo o espaço?

..."Somente uma história solidária dos povos poderá levar o pensamento islâmico e muçulmano a confrontar, pela primeira vez, os desafios da modernidade e a se beneficiar das contribuições do pensamento científico e da interrogação filosófica"...
Mohammed Arkoun, professor universitário, berbere, muçulmano.
Anónimo disse…
o 11 de setembro foi embuste de Bush. Só cego é que não quer ver.

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