Carta aberta a Galileu Galilei
"Eppur si muove!"
Galileu, hoje é o teu dia de anos. Na sabedoria dos teus 445 anos deves agradecer ao Papa a missa com que celebra o teu aniversário. Não sejas ingrato, repara bem, é a primeira a que tens direito em séculos de defunção, é de borla e talvez em latim para não atrapalhar o teu entendimento com o italiano moderno. E é missa solene, daquelas que só se rezam por mortos poderosos.
Eu sei que não sabes, como pode um cadáver saber, mas 350 anos depois da morte, o teu processo foi reaberto e bastaram sete anos para te reabilitarem. Hoje a Terra já é redonda, mesmo para o Vaticano, e gira, mesmo com este Papa, e passas a ter uma estátua nos jardins do Vaticano. Não digas que não é grande a misericórdia dos ungidos do Senhor!
Já lá vão dez anos depois de te absolverem e tu, desagradecido, não curas um cancro a uma freira nem a moléstia da pele a um médico do Opus Dei, és um ingrato, podias frequentar os altares, não faltaria quem te rubricasse o prodígio nem um padre postulador para te elevar à santidade, podias até virar colega de S. José Maria Escrivà.
Não rias, é vulgar importar do Inferno um excomungado e exportá-lo para o Paraíso. A agência de viagens celeste faz mudanças, não calculas como evoluíram os transportes, o ex-prefeito da Sagrada Congregação da Fé, como agora se designa o santo Ofício, é o Papa e já nomeou uma escolta para transferir Monsenhor Lefebvre.
Galileu Galilei, larga o túmulo e, da tua Florença, corre a Roma e agradece ao papa a missa solene e a estátua e diz-lhe que há 367 anos que deixaste de incomodar a fé com as tuas heresias e que, nunca mais, farás uma descoberta que prejudique o brilho da tiara e o conforto do camauro.
Comentários
Excelente post!
Todavia, enoja-me a incomensurável hipocrisia que está por detrás daquelas vestes cor de púrpura ou da outra alva paramentação - da cor das penas de gaivotas voando - que é usada pelo primum inter pares...(que bate com a mão escondida), sendo incapazes de resolver o dilema que criaram entre a Ciência e a Fé vêm, agora, promover uma homenagem a Galileu, inquinada com o espectro do criacionismo.
A "Federação Mundial de Cientistas", promotora da exposição sobre Galileu e, ao que parece, da dita missa, tem sido dirigida pelo físico católico Antonino Zichichi.
Para boa compreensão desta incómoda associação, cito, uma passagem de escrita por Zichichi:
"a teoria que deseja colocar o homem na mesma árvore genealógica dos símios está abaixo do nível mais baixo de credibilidade científica.
... Se o homem do nosso tempo tivesse uma cultura verdadeiramente moderna, deveria saber que a teoria evolucionista não faz parte da ciência galileana.
Faltam-lhe os dois pilares que permitiriam a grande virada de 1600: a reprodução e o rigor.
Em suma, discutir a existência de Deus, com base no que os evolucionistas descobriram até hoje, não tem nada a ver com a ciência.
Com o obscurantismo moderno, sim".
in "Perché io credo in colui che ha fatto il mondo", de Antonino Zichichi, ed. : Objetiva, Rio de Janeiro , 2000.
Um pretenso "criacionista ultra-moderno", mas na verdade um equilibista circense que trabalhando no arame (Fé), leva uma vara de equlíbrio, na mão, para não cair (Ciência) e, no fundo, não é mais do que um modesto serventuário dos designios da ICAR.
Na verdade, esta "homenagem" deslocada a Galileu, levanta inquietantes interrogações?
1) Por razão a Federação Mundial de Cientistas, ligada ao Vaticano (Zichichi delicia o Conselho Pontifício de Justiça e Paz com "brilhantes" Conferências), foi buscar Galileu Galilei como "bandeira" do criacionismo?
2) O que é esta "Federação Mundial de Cientistas"? Um organismo pontifício?
Bem. Para mim, Antonino Zichichi é o João César das Neves de lá...
" A INQUISIÇÃO condenou Galileu Galilei por ele acreditar, como Copémico, que a terra se mexia e não era o centro do Universo. No século XVII, a Terra não parecia mexer-se, e era verdade segura que era o centro do Universo. Galileu, acusado de heresia, foi obrigado a negar que a terra se mexia. Foi condenado, preso, depois forçado a permanecer em casa, queimaram- lhe o livro. Nada disso, terá dito Galileu, impedia que a terra se movesse. Era um facto e continuaria a ser um facto, fosse qual fosse a opinião dos senhores daquele tempo.
A frase ficou na História, "eppur si muove". A frase sobressaltou-me o espírito ao ouvir mais um dos debates sobre o ABORTO. Impressionou-me a ligeireza com que se ilude um facto, o ser humano vivo que é eliminado quando se faz um aborto. Fala-se do tema como se o facto não existisse. Ainda mais me impressionou o modo como se invoca a tolerância. Como é que se pode invocar a tolerância quando a consequência do nosso acto é eliminar um ser humano, o bebé, que está ali, mal ou bem, não há volta a dar? Só há uma explicação possível: ignorando o facto, virando a cara. Nestes termos, tudo se torna numa questão de tolerância: se o aborto não elimina nenhum ser humano, então não há o direito de não deixar ao critério livre de cada um a opção de abortar. Só que não é assim, "eppur si muove". Não é assim no domínio da natureza, dos factos, dos factos filmados pela ciência.
O filme que existe sobre a realização de um aborto mostra como o bebé foge da morte, como qualquer um de nós.
Não se trata de impressionar os leitores ao escrever isto, parece que é assim, parece que é um facto e contra factos não há argumentos. É perante este facto brutal, esta realidade que está para além do nosso controle, que nos é imposta pela natureza das coisas, que a nossa consciência se tem que definir.
Aquela ideia muito superficial e masculina de que no meio de um aborto, de um desmancho, Só sai sangue, não é verdade. Vai alguém, para um balde, alguém mesmo.
Tenho que aceitar que alguns pensem que é indiferente, que é um ser humano rudimentar, dá-se-Ihe uma picada, tudo bem. Não penso assim, mas reconheço que esta versão dura do assunto tem, pelo menos, a virtude de não procurar ser hábil, é assumida, não se engana a si própria.
Também aceito a ignorância desculpável, a ignorância dos que acreditando com sinceridade que no aborto não se perde uma vida humana, sintam no seu íntimo que a questão se resume ao direito da mãe dispor do seu corpo e da sua vida e que é uma intolerância ser condenada por isso.
Nos pressupostos deles, concordaria com eles. Já tenho dificuldades em compreender que aqueles que têm consciência que uma vida humana está em jogo no aborto tornem livre e sem qualquer limitação esse acto e invoquem a tolerância para o permitir.
E mesmo se o ser humano que vai ser eliminado é um ser rudimentar, a tolerância está em ignorá-lo, ou em protegê-lo?
Para fugir à realidade dizem-se coisas impensáveis. Que não é bem um ser vivo, que é às 11 mas não é às 10 semanas, que os olhos às 10 semanas não são bem como se diz, que o espermatozóide também é vida, eu sei lá o que tenho ouvido. Tenta-se desfigurar culturalmente a evidência cientifica e humana que aquele ser é.
A televisão do estado devia passar o filme que existe sobre um aborto em concreto. Devidamente enquadrado e explicado, fora de qualquer tempo de antena. O aborto tem dois lados, tem dois dramas, a mãe e o filho. Devíamos conhecer os dois dramas antes de tomarmos uma decisão.
Por vezes, é melindroso o ponto de equilíbrio entre a defesa dos valores e a procura de solução para os dramas humanos. Há os que pensam que nenhum ponto de equilíbrio deve ser permitido. Não concordo. A lei que existe, com os seus casos excepcionais, é o ponto de equilíbrio adequado para este drama. Liberalizar, como agora se pretende, é ir longe de mais. Que mundo estamos nós a construir, com base em que valores?
O bebé mexe-se, mesmo que o ignoremos. "Eppur si muove", é esse o problema."
António Pinto Leite
Retirado da revista -EXPRESSO
de 06 junho de 1998