Ditadura, pessoas e acasos da vida (Crónica)
Quando da insurreição de Beja, passei o fim de ano no Cume, sede da freguesia de Vila Garcia, a 10 km da Guarda, onde a minha mãe era professora. Ainda dormia quando, na madrugada de 1 de janeiro de 1962, meu pai me acordou, com o rádio na mão, para me dizer que o quartel de Beja tinha sido assaltado. Com uma garrafa de vinho do Porto e dois cálices fizemos a precipitada celebração de um desejo que redundaria em fracasso.
Nunca tinha ingerido uma bebida alcoólica em jejum, experiência que só têm os padres, por dever do múnus, e os bêbedos, por hábito. Àquela hora o locutor de turno falava de uma tentativa de assalto ao quartel de Beja e de tiros, além da existência de feridos e de possíveis mortos. Foi breve o entusiasmo e 12 longos e dolorosos anos nos separavam ainda da liberdade, mas nós não sabíamos.
O ano de 1961 tinha sido o de todas as calamidades para a ditadura e de muita esperança para a democracia. Em janeiro o capitão Henrique Galvão sequestrara o navio Santa Maria. O Governo estava isolado; caíram Goa, Damão e Diu; foram lançados panfletos sobre Lisboa, de um avião desviado por Palma Inácio; Daomé ocupou o Forte de S. João Baptista de Ajudá, fortaleza que o comandante incendiou para gáudio do regime e prejuízo da nossa presença histórica. Havia, pois, razões para crer no fim da ditadura e do ditador. O assalto que Varela Gomes e Manuel Serra dirigiram tivera na preparação Humberto Delgado, que entrou em Portugal, clandestinamente, para o comandar.
Em risco de vida ficou o destemido capitão Varela Gomes que, ao dar ordem de prisão ao major Calapez Martins, já prevenido do golpe, foi metralhado. Varela Gomes resistiu a várias cirurgias, sob prisão. A PIDE prendeu ainda o capitão Eugénio de Oliveira e os outros implicados, civis e militares, bem como os suspeitos do costume, enquanto era vexada pela fuga bem sucedida do general Humberto Delgado.
O subsecretário de Estado do Exército, tenente-coronel Jaime da Fonseca, morto a tiro, por fogo amigo, «no desempenho das suas funções», segundo a explicação oficial, teve as mais altas honras de Estado e o funeral foi usado pelos próceres do regime, como a homenagem ao mártir, cuja devoção foi duvidosa. Trajava à civil, acompanhado apenas pelo enigmático capitão Alves Ribeiro, ajudante de campo do ministro e não seu, militar com passado obscuro, que escapou incólume, apesar da chuva torrencial e das condições de difícil visibilidade com que juntos se dirigiam ao quartel. A viúva terá recusado o aperto de mão e os pêsames desse capitão. A morte foi atribuída à GNR.
Dois anos depois eu iria conhecer a Maria Eugénia Varela Gomes. A história também se faz de acasos. A Lourinhã era uma pequena vila onde todos se conheciam. Alguns dias depois da minha chegada já era conhecido de muitos e granjeara amigos. Um deles, o Marques da Silva, conservador do Registo Civil e advogado, havia de me apresentar ao seu colega Joaquim Catanho de Meneses que em cada sábado vinha à Lourinhã, à sua quinta na aldeia de Miragaia. A democracia chegava de automóvel ao fim de semana.
Catanho de Meneses deixava a mulher na casa da quinta e vinha tomar café com o tio, coronel Helder Ribeiro, e a Maria Eugénia, ao Café Belmar. O Marques da Silva e eu fazíamos-lhes companhia. Era com raiva que a Maria Eugénia me dizia: se um dia puder ser boa ao «seu amigo»…, forma irónica de referir o ministro do Interior, Alfredo dos Santos Júnior, ex-governador civil da Guarda, que aí conheci. Morreu de velhice, bem sacramentado, impune, o médico fascista, antigo presidente do CADC, deputado e dirigente da União Nacional responsável da repressão do seu ministério numa das fases mais opressivas da ditadura durante a qual a PIDE foi a Espanha assassinar o general Delgado, morte que Salazar prontamente atribuiu aos comunistas, os suspeitos do costume, através de uma comunicação televisiva ao país.
Depois do convívio, geralmente observado do exterior por indivíduos de óculos escuros e gabardine cinzenta, o Marques da Silva ia trabalhar, o Catanho de Meneses levava a Maria Eugénia a Peniche, para a visita ao marido, e eu tinha o privilégio de ficar até ao regresso de ambos a conversar com o saudoso e afável coronel Helder Ribeiro.
Quem se lembrará hoje desse destacado republicano cujo nome ainda anda por aí em várias placas toponímicas de ruas de algumas cidades e que tão poucos conhecem?
O coronel Helder Ribeiro, n. 1889 – f. 1973, foi oficial de Infantaria e do Estado-Maior, professor do curso de Estado Maior, combatente da Primeira Grande Guerra, em França, três vezes ministro da Guerra e ministro da Instrução, em 1924. Foi militante do Partido Republicano desde a Universidade. Este republicano, militar, político, oficial da Torre e Espada, conspirou contra a ditadura, foi preso e deportado, e nunca abdicou da luta. Era uma referência e presença constante nas campanhas da oposição.
Foi com essa figura maior da República, da coragem e da ética, com esse participante da Revolta de 26 de Agosto de 1931, que tive o privilégio de conviver e que me dizia como resistir ao isolamento da prisão, como era possível dobrar um guardanapo de tantas e tão variadas formas de modo a passar o tempo sem perder o tino e a esperança.
Temos de lembrar os heróis que mantiveram em lume brando a chama da liberdade que explodiu em 25 de Abril de 1974. Quando os esquecemos, vamos destruindo o ímpeto para resistir ao prenúncio de novas ameaças.
Foi talvez um sobressalto cívico que me levou a percorrer de novo o caminho da vida, em sentido inverso, para exumar recordações que me preencheram os dias e trazer as memórias que me alimentam.
Nunca tinha ingerido uma bebida alcoólica em jejum, experiência que só têm os padres, por dever do múnus, e os bêbedos, por hábito. Àquela hora o locutor de turno falava de uma tentativa de assalto ao quartel de Beja e de tiros, além da existência de feridos e de possíveis mortos. Foi breve o entusiasmo e 12 longos e dolorosos anos nos separavam ainda da liberdade, mas nós não sabíamos.
O ano de 1961 tinha sido o de todas as calamidades para a ditadura e de muita esperança para a democracia. Em janeiro o capitão Henrique Galvão sequestrara o navio Santa Maria. O Governo estava isolado; caíram Goa, Damão e Diu; foram lançados panfletos sobre Lisboa, de um avião desviado por Palma Inácio; Daomé ocupou o Forte de S. João Baptista de Ajudá, fortaleza que o comandante incendiou para gáudio do regime e prejuízo da nossa presença histórica. Havia, pois, razões para crer no fim da ditadura e do ditador. O assalto que Varela Gomes e Manuel Serra dirigiram tivera na preparação Humberto Delgado, que entrou em Portugal, clandestinamente, para o comandar.
Em risco de vida ficou o destemido capitão Varela Gomes que, ao dar ordem de prisão ao major Calapez Martins, já prevenido do golpe, foi metralhado. Varela Gomes resistiu a várias cirurgias, sob prisão. A PIDE prendeu ainda o capitão Eugénio de Oliveira e os outros implicados, civis e militares, bem como os suspeitos do costume, enquanto era vexada pela fuga bem sucedida do general Humberto Delgado.
O subsecretário de Estado do Exército, tenente-coronel Jaime da Fonseca, morto a tiro, por fogo amigo, «no desempenho das suas funções», segundo a explicação oficial, teve as mais altas honras de Estado e o funeral foi usado pelos próceres do regime, como a homenagem ao mártir, cuja devoção foi duvidosa. Trajava à civil, acompanhado apenas pelo enigmático capitão Alves Ribeiro, ajudante de campo do ministro e não seu, militar com passado obscuro, que escapou incólume, apesar da chuva torrencial e das condições de difícil visibilidade com que juntos se dirigiam ao quartel. A viúva terá recusado o aperto de mão e os pêsames desse capitão. A morte foi atribuída à GNR.
Dois anos depois eu iria conhecer a Maria Eugénia Varela Gomes. A história também se faz de acasos. A Lourinhã era uma pequena vila onde todos se conheciam. Alguns dias depois da minha chegada já era conhecido de muitos e granjeara amigos. Um deles, o Marques da Silva, conservador do Registo Civil e advogado, havia de me apresentar ao seu colega Joaquim Catanho de Meneses que em cada sábado vinha à Lourinhã, à sua quinta na aldeia de Miragaia. A democracia chegava de automóvel ao fim de semana.
Catanho de Meneses deixava a mulher na casa da quinta e vinha tomar café com o tio, coronel Helder Ribeiro, e a Maria Eugénia, ao Café Belmar. O Marques da Silva e eu fazíamos-lhes companhia. Era com raiva que a Maria Eugénia me dizia: se um dia puder ser boa ao «seu amigo»…, forma irónica de referir o ministro do Interior, Alfredo dos Santos Júnior, ex-governador civil da Guarda, que aí conheci. Morreu de velhice, bem sacramentado, impune, o médico fascista, antigo presidente do CADC, deputado e dirigente da União Nacional responsável da repressão do seu ministério numa das fases mais opressivas da ditadura durante a qual a PIDE foi a Espanha assassinar o general Delgado, morte que Salazar prontamente atribuiu aos comunistas, os suspeitos do costume, através de uma comunicação televisiva ao país.
Depois do convívio, geralmente observado do exterior por indivíduos de óculos escuros e gabardine cinzenta, o Marques da Silva ia trabalhar, o Catanho de Meneses levava a Maria Eugénia a Peniche, para a visita ao marido, e eu tinha o privilégio de ficar até ao regresso de ambos a conversar com o saudoso e afável coronel Helder Ribeiro.
Quem se lembrará hoje desse destacado republicano cujo nome ainda anda por aí em várias placas toponímicas de ruas de algumas cidades e que tão poucos conhecem?
O coronel Helder Ribeiro, n. 1889 – f. 1973, foi oficial de Infantaria e do Estado-Maior, professor do curso de Estado Maior, combatente da Primeira Grande Guerra, em França, três vezes ministro da Guerra e ministro da Instrução, em 1924. Foi militante do Partido Republicano desde a Universidade. Este republicano, militar, político, oficial da Torre e Espada, conspirou contra a ditadura, foi preso e deportado, e nunca abdicou da luta. Era uma referência e presença constante nas campanhas da oposição.
Foi com essa figura maior da República, da coragem e da ética, com esse participante da Revolta de 26 de Agosto de 1931, que tive o privilégio de conviver e que me dizia como resistir ao isolamento da prisão, como era possível dobrar um guardanapo de tantas e tão variadas formas de modo a passar o tempo sem perder o tino e a esperança.
Temos de lembrar os heróis que mantiveram em lume brando a chama da liberdade que explodiu em 25 de Abril de 1974. Quando os esquecemos, vamos destruindo o ímpeto para resistir ao prenúncio de novas ameaças.
Foi talvez um sobressalto cívico que me levou a percorrer de novo o caminho da vida, em sentido inverso, para exumar recordações que me preencheram os dias e trazer as memórias que me alimentam.
Ponte Europa / Sorumbático
Comentários
Só não explicam porque a ditadura sobreviveu à queda da cadeira em 1968.
Há coisas inexplicáveis em Portugal.
A ver se o nevoeiro do esquecimento não sepulta a memória.
Obrigado.