A indústria dos milagres não entra em crise

Não compreendo o entusiasmo com que os cruzados degolavam infiéis, a euforia com que a Inquisição incinerava bruxas, ímpios e judeus, o dever cristão de denunciar pais, irmãos e filhos, suspeitos de heresia, nem o gozo da combustão de livros heréticos.

Não aprendi a gozar jejuns, a deliciar-me com cilícios ou a extasiar-me com a castidade. Sou um indivíduo falhado para a vida eterna e um problema para o qual a democracia e os hábitos atuais não têm solução.

Não discuto o valor nutritivo da eucaristia, o interesse terapêutico da missa, a utilidade da confissão, como detergente, nem o valor da oração para adquirir um lugar no Paraíso.
Duvido, sim, da influência das novenas na pluviosidade, da capacidade de santa Bárbara a amainar trovoadas, da autonomia de voo da Virgem Maria para poisar nas azinheiras de Fátima, dos anjos de duas, quatro e seis asas e de toda a fauna celeste cuja existência embevece os crentes.

Abomino o hábito de vergastar pessoas para agradar a Maomé, de decepar membros para cumprir o Corão, de lapidar mulheres para punir o adultério, de decapitar infiéis para satisfazer Alá e os suicidas obcecados por virgens e rios de mel.

Troco Moisés por Voltaire, Cristo por Pasteur e Maomé por Rousseau. À fé prefiro a dúvida e aos milagres a realidade. Desprezo Deus e a sua vontade e substituo qualquer encíclica por um livro de Saramago.

E não sei o que dizer da onda de beatificações e canonizações com que o papa Francisco continua a produção industrial da santidade.

No último sábado coube a beatificação ao sucessor do franquista S. Josemaria Escrivà, Álvaro del Portillo. Para isso foi-lhe adjudicado o primeiro milagre. Não lhe faltarão preces para obrar o segundo milagre com vista à canonização.

Ponte Europa / Sorumbático

Comentários

Marquês! Anda cá baixo,que eles cá estão outra vez!
Marquês! Anda cá baixo,que eles cá estão outra vez!
e-pá! disse…
Não será propriamente só a 'industria dos milagres'. Estaremos perante uma condição mais vasta: a 'indústria de fé'. Que se manifesta transversalmente pelas religiões do livro. Este o mecanismo hodierno subjugado a números e resultados.
Onde a competitividade se escarniça e o empreendedorismo (em hibernação há milénios) foi abafado por incontrolados processos de produtividade (visíveis na criação de santos mas também dos 'mártires', nas imolações, nas lamentações, etc.) e a inovação afundou-se.
O que se passa no Médio Oriente, em África, nos confins asiáticos, são pontuais balancetes porque a procissão não abranda nos seus ímpetos...

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