Há limites à crítica e à ridicularização?


Último desenho do cartoonista, publicado no dia do seu assassinato





Muitos jornais que condenaram o horroroso crime que matou 12 pessoas e feriu milhões não resistiram ao cobarde apelo à moderação na crítica e à contenção na ridicularização. Deve-se à corajosa provocação de alguns a tranquilidade dos críticos moderados, tanto no campo das ideias como no dos costumes.

Gozar com os deuses, sejam eles ícones políticos ou religiosos, pode provocar a ira dos devotos mas não deve inibir a criatividade dos iconoclastas. O homem traído, a mulher devia calar-se, era geralmente absolvido em tribunal do horroroso crime – o assassínio –, antes do 25 de Abril. Que progresso, desde então!

A blasfémia, delito medieval, ainda é punível com prisão pelo Código Penal português. Felizmente, a jurisprudência ignora o anacronismo legislativo e privilegia a liberdade de expressão sobre os preconceitos religiosos. A blasfémia era a arma que o Charlie Hebdo usava ao serviço da liberdade, contra tartufos e as idiossincrasias religiosas e políticas. Marine de Pen, beneficiária do crime hediondo, deve ter sorrido pelo castigo a quem a escarnecia e ao seu pouco recomendável partido.

Se Mary Quant não tivesse criado a minissaia, ainda hoje a baixa lisboeta teria devassos moralistas, em frente às paragens dos autocarros, a espreitar os tornozelos femininos. Ganharam as mulheres uma elegante peça e perderam os libertinos um fetiche erótico.

Um jornal, tal como um livro, só lê quem quer. A ofensa que cada um deles pode fazer é um motivo de satisfação para quem não gosta de quem se ofende. Ridicularizar Maomé, Cristo, Buda, Abraão ou a Virgem Maria é tão legítimo como gozar as vestes femininas de um clérigo, juiz ou catedrático, ou os hábitos alimentares de um vegetariano.

No dia 13 de maio de 2008, a excursão anual a Fátima, comandada por um provinciano clérigo de uma aldeia do distrito da Guarda, o cardeal Saraiva Martins, ao tempo o chefe da repartição vaticana onde se criam beatos e santos, teve o lema «peregrinação contra o ateísmo». Apesar do carácter belicista, digno do espírito das cruzadas, os maratonistas pios limitaram-se a disparar canções e ave-marias, às vezes de joelhos. Que mal veio daí aos ateus?

O combate ao ateísmo é legítimo. Seria intolerável se o lema fosse «contra os ateus».

Apostila – Repudiando, sem hesitações, o cobarde ato de vandalismo perpetrado ontem contra a mesquita de Lisboa, reitero o nojo pelo Islão cujos facínoras estão a paralisar Paris e a assustar o mundo civilizado.

Comentários

Manuel Galvão disse…
Andaram três religiões, durante séculos, a explicar ao bicho-homem que só seria civilizado se não matasse, não cometesse adultério, não roubasse, não praticasse falso testemunho, não cobiçasse mulher do próximo ou a vivenda aonde ele mora, ou a empregada que ele tem, ou o boi ou o jumento que ele tem (Deuteronomio 5), para depois vir um jornal semanário ridicularizar esta e outras mensagens importantes que transformaram o bicho-homem em homem. E fazem-no com o fito de ganhar dinheiro a alegrar os consumidores néscios de barriga cheia que vivem muito acima das suas possibilidades à custa de roubarem descaradamente os povos pobres, pelo mundo fora. Consumidores que se babam de prazer a ver a Casa dos Segredos, a ouvir Quim Barreiros (o artista preferido nas festas de estudantes das universidades), a ver no Youtube as músicas da Rosinha, ou, espante-se, a ver filmes pornográficos na NET! Para além, claro está, de se deliciarem com os cartoons que ridicularizam tudo e todos, incluindo profetas e religiões…
Além disso estes consumidores leem jornais e veem telejornais e artigos de opinião aonde só se dizem mentiras ou, quando muito, semiverdades. Consumem OPINIÃO. Depois vão votar certinhos (menos de 50% deles) nos partidos que são os seus, exprimindo as suas opiniões através do voto…
E os poderes instituídos chamam e isso liberdade de expressão e de informação.
Consumidores que, para além disso, roubam à descarada (as Finanças e muito mais), cometem adultério frequentemente, praticam falso testemunho muitas vezes, cobiçam grande parte das mulheres dos outros, e o carro deles, e a casa deles, e o burro deles se o tiverem, etc., sem que sejam incomodados pelo DCIAP ou pelo Ministério Público (com exceção do preso 44, claro está!). Só são chateados quando matam, e nem sempre.
E os poderes instituídos chamam a isto Estado de Direito.
Porém, em países aonde não existe DCIAP ou Ministério Público, impera a lei do cacete, ultimamente substituído pela espingarda, e bazuca (por enquanto não têm acesso ao drone), sentem-se no direito de perseguir fora das suas fronteiras e punir iniquidades lá praticadas que os afetam. Direito esse, emergente do direito comparado internacional, aonde se tornou banal, e passou a ter força de lei, que os países pratiquem a punição além das suas fronteiras, com toda a naturalidade, sem considerarem que estão a violar a Lei Internacional.
E os poderes instituídos chamam a isto de terrorismo quando é praticado no seu território, e chamam de defesa da democracia quando é praticado no território dos países que não têm DCIAP.
400 cidadãos daqueles países que não têm DCIAP, entram em cada dia que passa no espaço Schengen, sem saberem comunicar por palavras ou por escrita, sem dinheiro, sem formação profissional. Veem juntar-se aos filhos de emigrantes que por cá andam, os quais exibem com orgulho a nacionalidade europeia mas que continuam sem perspetivas de integração. Todos formando um exército de milhões de indivíduos suscetíveis de serem recrutados com naturalidade como jihadistas.
Será bom de imaginar como os Poderes Instituídos vão descalçar esta bota.
O Islão não tem nada a ver com isto.
Manuel Galvão:

Já vi que, para si, a liberdade de expressão é dispensável.

Penso de forma diferente.
Manuel Galvão disse…
Carlos Esperança.
A liberdade de expressão que é usada para estupidificar o povo e para subverter a democracia é bem dispensável. Pelos vistos, para si não!
Conheço estes cartoonistas desde 1974, quando eram Hara Kiri ou nome parecido. São pimbas até dizer basta. Seus trabalhos têm sido usados demais para servir objetivos políticos inconfessáveis, normalmente de extrema-direita.
Manuel Galvão: Lamento que prefira denegrir os mortos a condenar os assassinos. Fui leitor do Hara Kiri e do Charlie.

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