Ponte Europa - 19.11.2016


O lançamento do livro ‘Ponte Europa’, da autoria de Carlos Esperança, ocorrido, ontem, numa escola primária – hoje sede uma das Juntas de Freguesia de Coimbra – transportou-nos a um mundo ‘irreal’.
Desde a vetusta escola encimada por campanários e rigorosamente dividida, quanto a género, por muretes divisórios (os muros não são uma criação do presente), onde as crianças viviam um ambiente escolar de semi-clausura, muito ao estilo do estertor da monarquia, onde o arquitecto Adães Bermudes pontificou, foi possível aconchegar um conjunto humano de cidadãos que se dedicaram ao doloroso exercício de reavivar memórias.

Este Portugal feito de memórias, de modestos desígnios e muitas ambiguidades mas avesso a tirar lições encontrou aí espaço para celebrar, ontem, uma afetiva e carinhosa cerimónia. Foi possível ‘encontrarmo-nos’ fisicamente e passar a enfatizar uns pitorescos acontecimentos (não obrigatoriamente todos literários), amiudadas vezes pícaros, revisitando um mundo rural, cheio de histórias, de relevâncias, curiosidades e acima de tudo cumplicidades, sem referir explicitamente que estávamos perante o seu velório (da sociedade rural).

Desde a sub-humana vida dos campos, onde tudo faltava mas onde tudo era exigido em termos de sobrevivência, passando pela picardia da prostituta Libânia que esbanjava afetos em estreitos tálamos e tratava o senhor presidente do Conselho por ‘meu filho’, pelas diatribes dos diretores administrativos escolares e finanças, funcionários e párocos que pontificavam no meio de um mar encapelado pelo medo, analfabetismo e incultura, tornados serventuários de um regime ditatorial, clerical e anquilosado, foi possível em pequenos episódios passar em revista uma época extremamente importante para a compreensão do Portugal de hoje. Estas memórias são gratificantes para quem viveu essa época, enchem vazios que a idade vai criando (até pelo embotamento da memória que a idade acarreta) mas não podemos esquecer que são a chave para a compreensão do presente e quiçá um dos alicerces para a construção do futuro.

Hoje, quando enfrentamos um drama emigratório de consequências devastadoras que perturba o Mundo e recai com inaudita violência sobre a Europa, parece-nos pequena e insignificante a migração ocorrida dos campos para as cidades e do Interior para o Litoral. Todavia, esta última marcou-nos e no íntimo continuamos a sentirmo-nos ‘provincianos’, embora exista uma profunda dificuldade em reconhecer os cosmopolitismos das grandes urbes.

Nunca seremos capazes de nos libertarmos da canga que foi a ruína da ‘lavoura’ que trouxe consequências em catadupa e não entendemos a demonstrada incapacidade em usar os instrumentos da revolução industrial em benefício da agricultura, tornando um polo aglutinador de desenvolvimento do Interior. Esvaziamos o futuro e deste modo o território. Um outro fator de desestruturação da sociedade rural que se enxertou nesta debandada foi a guerra colonial que mobilizou muita gente que no fim da comissão de serviço ‘imposta’, adquiriu ‘mobilidade’ e emigrou.

Quando nos reunimos por acidente de percurso e por amizade – como é o caso de um livro de contos - existem histórias bizarras, temos coleções de vivências a compartilhar, guardamos memórias, mas estamos deslocados no tempo e estranhamos o espaço que só em parte reconhecemos.

Ontem, foi bem visível este desfasamento que é muito diferente da frustração. Foi antes de tudo uma comemoração de diversas identidades como o denominador da interioridade. Almejamos construir pontes do passado para a futuro – daí a ‘Ponte Europa’ - mas não sabemos como. Não queremos perder o comboio da história mas o apeadeiro já não existe. Possivelmente foi transformado numa startup!

Finalmente, uma das indignações que nos assolou nos últimos anos foi a mudança toponímica de Ponte Europa para Ponte Rainha Santa Isabel. Talvez, esteja aí o decifrar dos equívocos. Em vez de caminharmos para a Europa uma das mais importantes apostas de futuro da nova geração de portugueses, Coimbra resolveu encetar o regresso aos tempos medievos onde, em pleno séc. XIII, uma infanta aragonesa reinou por cá, enquanto à sua volta, pelo Reino, grassava a fome, marca indelével da pobreza.

Portanto, Carlos Esperança, entre a medieva Isabel de Aragão e a Europa em franca convulsão de hoje há muitas pontes a erguer e muitos contos por escrever.

Comentários

Este era outro prefácio que ficava bem.

Obrigado. Abraço.

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