Conflito na Ossétia do Sul




Fonte da Imagem: Wikipedia

Com a desagregação das grandes federações do leste da Europa após a queda da cortina de ferro, muitos conflitos ficaram latentes. No caso da Checoslováquia, que tinha uma estrutura federal simples, apenas tendo como constituintes duas repúblicas federadas com uma homogeneidade étnica e uma grande afinidade cultural, o divórcio e a partilha puderam fazer-se a bem. No caso de federações mais complexas e maior diversidade étnica, como a URSS e a Jugoslávia, as coisas correram menos bem, com o desmoronamento sangrento da Jugoslávia e com o desmembramento menos dramático (porque subsistiu uma potência hegemónica, a Rússia, que bem ou mal consegue conter os secessionismos dentro e fora de portas). Estas duas federações contavam com uma estrutura federal complexa e com vários escalões: na Jugoslávia existiam as repúblicas socialistas federadas (entidades federais de 1º escalão, Eslovénia, Croácia, Montenegro, Sérvia, Bósnia e Herzegovina e Macedónia) e as regiões autónomas (entidades federais de 2º escalão, Kosovo e Metohia e Voivodina, nominalmente sob soberania Sérvia, mas constitucionalmente sob dependência da federação). De forma semelhante, mas ainda com maior complexidade, sucedia na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, onde coexistiam três escalões de entidade federada: as Repúblicas Socialistas Soviéticas, algumas delas com representação autónoma nas nações unidas (Rússia, Ucrânia, Bielorrússia, Moldávia, Estónia, Letónia, Lituânia, Geórgia, Arménia, Azerbaijão, Cazaquistão, Uzbequistão, Quirgistão, Turquemenistão, Tadjiquistão), as Repúblicas Socialistas Autónomass (dentro de cada RSS, caso nomeadamente da Abcásia, da Tchetchenia-Inguchétia, ou da Transdnístria), e ainda as regiões autónomas (Oblast'), como é o caso da Ossétia do Sul (Geórgia) e do Nagorno Karabakh (Azerbaijão, reivindicado pela Arménia). 
Muito frequentemente, estes escalões intermédios eram consequência da divisão de repúblicas federadas anteriores (o caso da República Socialista Soviética da Transcaucásia, que foi desmembrada em 1936, sendo o seu território distribuído entre a Geórgia, Arménia, Azerbaijão e  Rússia. Outras vezes eram uma forma de estabelecer equilíbrios, deprecando territorialmente repúblicas mais fortes (o caso da transferência da Crimeia da Rússia para a Ucrânia). Outras vezes serviam para prevenir conflitos e proteger minorias).

Nunca se pensou, durante a guerra fria, que essas federações viessem a desintegrar-se, continuando a engenharia geográfica a fazer um eterno corta e cola. Após a desintegração dos anos 90, a comunidade internacional aceitou apenas a independência das entidades federadas de primeiro escalão, olvidando as outras, e integrando-as segundo as fronteiras estabelecidas, muito frequentemente sem correspondência com a realidade. Tal deixou conflitos e (i?) legítimas aspirações latentes, com resultados por vezes explosivos (o caso do Kosovo, entidade federada de segundo escalão).

Há vários conflitos latentes na Ex-URSS que derivam desta engenharia geográfica. Por um lado existem regiões dentro de uma república com maioria étnica da república vizinha (o caso do Nagorno-Karabakh, de maioria arménia, integrado no Azerbaijão). Algumas regiões procuram tornar-se independentes da Rússia (o caso da Tchetchénia). E finalmente, existem inúmeras regiões de repúblicas vizinhas da Rússia em que existem fortes minorias de russos ou outras etnias russificadas, fruto principalmente das fortes movimentações (por vezes forçadas) de populações que decorreram na URSS, mormente durante o Estalinismo. É este o caso da Ossétia do Sul, da Abcásia (na Geórgia), da Transdnístria (na Moldávia, tendo a Transdnístria, de população maioritariamente russófona, sido desafectada da Ucrânia  e anexada à Moldávia em 1946). É ainda o caso das minorias russófonas do leste da Ucrânia e dos países Bálticos (cujos direitos foram e são cerceados, não obstante a adesão destes à UE).

A Federação Russa, gigante transcontinental, maior país do mundo, potência global e nuclear, com 28 línguas oficiais e 83 entidades federadas, exerce musculadamente, a bem ou a mal, uma política de vizinhança agressiva para proteger a sua integridade territorial, os direitos das suas minorias na periferia, e os seus interesses económicos e geoestratégicos.

Este é o caso da Ossétia do Sul. O conflito ficara empatado em 1991 e o status quo era transparente. A Geórgia procurou militarmente alterar o status quo recuperando o controle e a soberania efectiva da região rebelde. Concorde-se ou discorde-se, mas a Rússia reagiu, e era certo e sabido que reagiria desta forma. As regras do jogo eram claras, e a Geórgia avançou com a sua intervenção kamikaze, talvez com a ganância de assim poder aderir à NATO já em Dezembro de 2008. Entrou na Ossétia, causou mortos e destruição, e foi batida como já seria de esperar. Por muito justa que possa ser a sua intenção de recuperar o controle das províncias rebeldes da Ossétia do Sul e da Abcásia, o que é contestável, adoptou o pior meio possível. Causou destruição e morte, numa operação que se anunciava impossível e inútil.

A Rússia interveio porque tinha que intervir. Por um lado, para dar um aviso forte à Geórgia (e também à Moldávia, e de certa forma à Ucrânia) que o status quo das províncias rebeldes controladas por forças afectas à Federação Russa (Ossétia do Sul e Abcásia na Geórgia, Transdnístria na Moldávia) é para manter, fazendo assim clara qual a sanção da violação do status quo. Anuncia também, com clareza, que não permitirá mais nenhum cavalo de tróia da NATO na sua periferia, e que os seus vizinhos terão que ser cooperantes (e não antagonistas, como é o caso do presidente georgiano Saakasvili) com o Kremlin. E finalmente interveio, porque nas alturas em que praticou contenção ao lidar com os seus vizinhos os seus interesses e os interesses dos seus cidadãos foram fortemente atingidos (nomeadamente no caso referido dos países Bálticos, que criaram um quase apartheid dos cidadãos russos aí residentes de largas décadas, e que rapidamente aderiram à NATO).

Concorde-se ou não com estas políticas musculadas de vizinhança, todas as potências a elas recorrem, não tendo países como os EUA ou a França qualquer legitimidade para criticar a Rússia. Basta ver-se o currículo vergonhoso das intervenções norte-americanas na América Latina e por todo o mundo, ou as intervenções da França no seu quintal africano, sempre que qualquer um dos seus títeres se encontra ameaçado por um golpe de estado, ou quando deixa de ser dócil.

Bush, Solana e Sarkozy podem bem barafustar, exigir um cessar fogo, ameaçar com a violação do direito internacional, etc. Mas a voz de quem tem telhados de vidro é fraca, e o resultado prático será o de sempre quando está em causa o excesso de uma potência: nada se passará. A Rússia acabará a sua operação de defesa, deixará o exército georgiano incapacitado de qualquer nova façanha bélica nas próximas décadas, e deixará muito claro que ali quem manda é ela. Com alguma sorte, ainda conseguirá a remoção do pró-ocidental Saakasvili do leme da Geórgia como a cereja no topo do bolo. Medvedev e Putin não poderiam ter melhor sorte que esta desastrada e irresponsável campanha militar georgiana. 

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