Nova guerra-fria em perspectiva

As ondas de choque caucasianas ainda mal se fizeram sentir. A demente invasão da Ossétia do Sul e os indícios de que, a seguir, sucederia a da Abkásia, vieram lançar mais perplexidades e perigos na frágil segurança internacional.

Admitamos que a Geórgia é um país e não uma birra bairrista que utilizou a derrocada da URSS para se afirmar como nação soberana. Desde o início da década de noventa do século passado as vicissitudes militares deram às importantes regiões geoestratégicas da Ossétia do Sul e da Abkásia uma independência de facto. Criaram-se mais duas regiões de predomínio étnico russo, a viver sob o guarda-chuva militar de Moscovo, enquanto a Geórgia perdia importância.

Entretanto, os EUA que exultaram com a implosão do império soviético não abdicaram de estender a NATO até à Polónia, Ucrânia e Geórgia num cerco que humilhava o velho nacionalismo russo.

A invasão do Iraque e o reconhecimento de outro país fantoche – o Kosovo – decisões tomadas ao arrepio do direito internacional, fragilizaram a diplomacia americana e dividiram os aliados europeus. Estes factos, que têm em comum a ilegalidade e a força, serviram agora para dar à Rússia o pretexto que lhe faltava para mostrar que já não é a ruína da URSS mas uma nova potência que, como a China e a Índia, se prepara para alterar a correlação de forças geopolítica que, desde a segunda Grande Guerra, ditou a hegemonia americana e dos seus aliados europeus.

O reconhecimento da Ossétia do Sul e da Abkásia, pela Rússia, é uma provocação ao Ocidente e ao direito internacional, mas é difícil ver uma diferença significativa entre a humilhação infligida, por Moscovo à Geórgia e a que a NATO impôs à Sérvia.

Não se vê, de resto, em que possa ser diferente o fundamento que levou – a meu ver bem – Slobodan Milošević a julgamento do TPI das razões que devem sujeitar o ainda presidente da Geórgia, Mikhail Saakashvili, a igual medida. Um foi responsável pelo genocídio no Kosovo, onde uma horda de facínoras não era mais recomendável, outro é responsável pela invasão e genocídio da Ossétia do Sul, a que a Rússia pôs cobro.

A única diferença entre Milošević e Saakashvili é em relação aos inimigos. O primeiro teve o azar de lhe calhar Bush e o segundo, Dmitri Medvedev. Perante quatro dirigentes pouco recomendáveis não podemos esquecer que os EUA e a União Europeia foram desafiados e humilhados pela Rússia. O feitiço virou-se contra o feiticeiro e uma nova guerra-fria já começou.

Sem a Rússia, que podia ser aliada da União Europeia e dos EUA, os problemas do Irão, Palestina, Coreia do Norte e Afeganistão, entre outros, não têm resolução à vista. O mundo é um local cada vez mais inseguro e o cowboy americano foi um dos piores flagelos que nos podiam ter calhado.

Comentários

O reconhecimento do Kosovo e o apoio à Geórgia, entre outras medidas da Nato, são autênticas provocações irresponsáveis a uma grande potência como é a Rússia. Por muito menos do que isso rebentou a 1ª Grande Guerra Mundial. Felizmente que hoje existem foruns como a ONU que até certo ponto servem de "almofada" para tais conflitos.
AHP:

Será que as pessoas já se esqueceram de que Kruschov, em 1962,teve de retirar os mísseis de Cuba depois de ter posto o mundo à beira da guerra nuclear?

Há uma coisa que falcões americanos e idiotas europeus não percebem: - A Rússia é indispensável para resolver as principais crises mundiais. Deve ser tratada como aliada e não ameaçada como inimiga.
telegram disse…
Penso que a verdadeira génese desta crise resulta da humilhação a que foi submetida a Russia com a independência do Kosovo e com o acumular de sucessivas perdas de influência na Europa.
Não acho que o cowboy americano seja muito pior que o cowboy russo Putin, o verdadeiro homem do poder. Faltam lideres carismáticos a este mundo em que vivemos. Em simultaneo, continuam os imperialismos americano e russo. Em oposição desde há anos, assiste-se a um enfraquecimento da Europa. A ordem mundial saída da II Guerra Mundial está esgotada e julgo que iremos todos sofrer até ao surgimento de um "novo mundo"
e-pá! disse…
Há, nitidamente, roturas e fragilidades no equilíbrio mundial que podem afectar destinos dos Povos , de Nações e Regiões.

Cabe à NATO uma grande responsabilidade por estas situações.

Na verdade, depois de um comportamento pouco eficaz (estou a ser contido) nos Balcâs, nomeadamente, na fase inicial da crise da ex-Jugoslávia.
Mais tarde, fechou este perturbante ciclo, com chave de ouro: - a independência do Kosovo.

Apetece perguntar: o que quer fazer no Cáucaso, isto é, nas barabas da Russia?

Talvez tenha chegado a altura de questionar a utilidade da NATO, depois do Mundo ter deixado de funcionar com 2 blocos.

Na verdade, parece-me que chegamos a um ponto em que, os interesses da Europa e dos EUA (matriz da NATO), em relação à Europa de Leste (estou a considerar a Europa do Atlântico aos Urais) podem encerrar um conflito latente, oculto, mas real.

Pelo que o comentário anterior (do colaborador "telegram") sobre "um novo mundo" pode ser de uma pertinência absoluta.
Um novo mundo ou uma nova ordem mundial poderão estar a acontecer perante a nossa incapacidade de perceber.

A globalização, brevemente, o dirá.

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