SAHEL e TUAREGUES ou sonhos do AZAWAAD e pesadelos do presente…
Se nos fixarmo-nos no século XX, verificamos que as ‘rebeliões tuaregues’ contra o colonizador francês, ganham expressão a partir de 1916 e estiveram confinadas ao Níger e ao norte do actual Mali.
São revoltas onde a religião islâmica está presente, através da corrente ‘sufista’, que é uma variante essencialmente contemplativa e de relacionamento ‘artístico’ e directo com Alá através de cânticos, músicas, danças, etc., práticas que – no entender das correntes ‘ultra’ - contrariam pretensos preceitos da ‘sharia’, sendo actualmente considerado, pela ortodoxia fundamentalista, como um movimento herético e remetido para a clandestinidade.
Será esta ‘deriva sufista’ (à margem das correntes chiita, sunita ou outras), essencialmente cultural, que criará (cimentará) a ‘identidade tuaregue’, com um lastro religioso essencialmente místico (ligado à ‘ordem Sanusiya’) e que estará na génese das reivindicações de autonomia presentes na revolta tuaregue de 1916-17 ocorrida, essencialmente, na região de Agadez (Níger).
Os tuaregues têm uma origem étnica que se entronca no povo berbere e povoam o Saara e o Sahel. São maioritariamente muçulmanos (desde o século XVI) mas devido à sua cultura nómada não adoptaram práticas da ortodoxia islâmica, nomeadamente em relação ao Ramadão e quanto às mulheres que sempre desempenharam um papel fundamental na vida e organização dos clãs e dos acampamentos.
Aliás, segundo reza a tradição tuaregue, o primeiro chefe tribal terá sido uma mulher (Tin Hinan) e a sucessão e heranças articuladas através de clãs matrilineares (apesar de islamizados os tuaregues continuaram a praticar a monogamia).
A lealdade tribal e a unidade linguística - o tamaxeque, originário da língua berbere que é a língua comum dos tuaregues - são os traços fundamentais na organização dos clãs e no enfrentar das agruras da vida nómada e a aridez do deserto (Saara, na sua língua).
Existem múltiplos clãs, pouco numerosos, devido à necessidade de possuírem uma grande mobilidade (nomadismo) e são chefiados ou por 'nobres' ou por 'guerreiros' que, para além de zelarem pela organização social e económica do seu clã, segundo um tradicional sistema de classes (onde a escravatura de populações subsaarianas esteve largamente representada nas actividades domésticas), só se reconhecem numa vaga identidade genérica ‘a nação tuaregue’.
Sendo um grupo étnico dedicado à pastorícia (cabras, ovelhas e camelos), ao comércio e à participação nas caravanas trans-saarianas (da África subsaariana, através do Saara até o Magreb ou ao Egipto e vice-versa), estas rotas comerciais que os fizeram conhecer - apesar das condições áridas e rigorosas do deserto – um grande sucesso económico e acumulação de riqueza, até que colonização francesa nos finais do século XIX, lhe trouxe a decadência e o século XX a morte do comércio trans-saariano tradicional e os lançou na exclusão e probreza.
Quando, no fim da II Guerra Mundial, é posto em marcha o processo de descolonização, a ‘retirada de África’ tendo como pano de fundo um mapa desenhado a régua e esquadro num qualquer gabinete europeu, esse movimento de auto-determinação dos povos africanos não resolveu os problemas dos tuaregues, antes agudiza-os.
A partir de 1960, os tuaregues, recentram o seu alvo e dirigem a sua luta pela autonomia fundamentalmente contra Bamako e Niamey, capitais do Mali e do Níger, que não cumprem o acordado em relação à protecção e integração das tribos tuaregues, sendo uma nova fase da luta exacerbada pelas secas e fomes de 1972 e 1983 que determinaram novos e sangrentos confrontos (no Mali e Níger). Este 'clima instável' volta a manifestar-se em 1990, e depois em 1996, provocando milhares de vítimas entre a população tuaregue (2500?), perante a ‘discreta’ interferência líbia (Kaddafi) e argelina.
Entre 2005 e 2007 voltam a verificar-se múltiplos confrontos – no Mali e no Níger – relacionados com a quebra dos compromissos assumidos (1997) entre as autoridades de Bamako e de Niamey e os movimentos tuaregues no sentido da sua integração política, económica e social, nestes Países, bem como o reconhecimento das suas características culturais .
Só em Outubro de 2011 aparece o movimento independentista tuaregue, conhecido como Movimento Nacional para a Libertação de Azawad (MNLA), de cariz unificador das tribos (e de grupos armados dispersos), com características laicas, que tinha como objectivo promover a luta pela constituição um Estado tuaregue no norte do Mali.
Perante os anteriores insucessos para ‘adquirir’ uma autonomia que travasse alguns dos arrastados problemas como a aculturação, a marginalização, a violência, o sub-financiamento e, fundamentalmente, o não cumprimento dos acordos de paz subscritos pelo regime de Bamako, o MNLA surge como um passo em frente na luta tuaregue.
Uma caminhada temerária já que o movimento nasce à volta de tuaregues ‘retornados’ (mercenários?) da insurreição líbia, fortemente armados, que regressam ao Mali, com o desmoronar do regime ditatorial de Kaddafi.
Outro percalço táctico é o estreitar de ligações com o grupo fundamentalista islâmico Ansar Dine (‘defensores do islão’) aparentemente para suprir necessidade financeiras, logísticas e de armamento. O Ansar Dine não vem só e, na verdade, para além das aparências regionais é uma organização transnacional enfeudada a organizações fundamentalistas islâmicas que actuam na área – o Al-Qaeda do Magrebe Islâmico (AQMI) e o Movimento para a Unidade e a Jihad na África Ocidental (MUJAO).
É importante recordar como o Ansar Dine aparece na luta tuaregue. O seu dirigente Ag Ghaly é um ‘velho’ combatente tuaregue que participou nas revoltas de 1990 e que nos acordos que se seguiram reconcilia-se com o poder sediado em Bamako. Posteriormente ‘desaparece’ sendo referenciada a sua passagem pelo Paquistão e pela Arábia Saudita, onde entra em contacto com financiadores do Qatar. Um trajecto ‘inconfundível’ que dispensa muitas considerações e tem sido a sombra permanente de toda a ‘primavera árabe’ , neste momento, em evolução (ebulição?) no norte de África e Médio Oriente (Síria), rumo ao desconhecido…
A revolta desencadeada em 17 de Janeiro 2012 que desembocou na declaração unilateral da independência do Azawaad (vasto território que engloba norte do Mali e do Níger e ainda o sul da Argélia) ‘ultrapassou’ os contornos da tradicional luta autonómica tuaregue cujo leit-motiv eram atropelos ‘pós-coloniais’ ou ‘neo-coloniais’ e a ‘não-integração’ (exclusão) das tribos tuaregues nos novos estados independentes nascidos a partir da descolonização europeia. Perante a degradação das condições internas no Mali, empolada pela destituição do presidente Amadou Touré, a luta tuaregue adquire uma forte dinâmica e parte para uma abrupta secessão no território reivindicado: Azawaad (norte do Mali).
A espúria ‘aliança’ do movimento tribal tuaregue com organizações fundamentalistas alterou a primitiva estratégia autonómica, depois independentista, para transformou-a numa ‘guerra santa’ em que as especificidades tribais se diluíram para serem submersas no revolto mar de ‘afirmação do islão’. O envolvimento do grupo salafista AQMI provocou uma viragem neste ‘conflito’ tornando a questão regional subsidiária de ‘estratégias globais’, isto é, incorporada na ‘rede’ (Al-Qaeda).
Posteriormente – recentemente – verificou-se o seguinte: o MNLA vai conquistando pelas armas praças no norte do Mali (Tombuctu, Gao, etc.) e logo atrás entram as forças do Ansar Dine a impor a 'sharia', o que constitui um grave entorse à luta tuaregue que, ao longo de dezenas de anos, embora muçulmanos, sempre conceberam um estado laico.
Pouco tempo depois surge uma inconciliável divergência entre a MNLA e os grupos islamitas. Estes afirmam-se desinteressados da independência do território Azawaad e revelam estar a lutar pela 'islamização de todo o Mali'. E imbuídos desta doutrina iniciam o avanço para sul que virá a precipitar a intervenção dos países da Comunidade Económica dos Estados Oeste Africano (ECOWAS), do CS da ONU e, particularmente, da França.
A partir daqui começa a batalha africana e internacional pela reconquista do norte do Mali.
A ‘nação tuaregue', é mais uma vez traída por espúrias alianças, pela nefasta evolução dos acontecimentos e, ainda, pela não precavida conjugação interesses não coincidentes (mas que se sobrepõem) com a sua longa e histórica luta pela libertação.
Esperemos pelos próximos tempos e pelas resoluções do CS da ONU que, hoje, mais uma vez, reuniu para debater esta delicada e confusa situação no Sahel...
Ao escrever este (longo, mas não consegui resumi-lo) texto tive sempre presente na minha memória as longas conversas (num francês ‘difícil’ e ‘arrevesado’) e os poucos dias de convívio com um velho guia tuaregue, antigo condutor de caravanas, que conheci em Ghat (deserto de Fézan – Líbia) e que me guiou pelo Saara – como se fossemos numa estrada - até à proximidade da fronteira do Mali (Parque Nacional de Akakus). Um homem digno, frugal, sábio, altivo, prudente, totalmente adaptado à aridez do deserto, capaz de perscrutar as dunas, descobrir poços de água no meio de nada, cheirar os ventos contra-alísios, orientar-se pela bostas e pegadas de camelo, exímio a cozer um óptimo pão na areia subjacente à fogueira que invariavelmente acendia no acampamento, colhendo - num terreno seco e arenoso - ervas com que fazia um delicioso chá, etc., mas que, acima de tudo, achava que os tuaregues mereciam viver num território livre administrado pelos próprios.…
É o homem da foto, ajoelhado, vestido com o K’sa (túnica) e shesh (turbante), ambos brancos, que espreita por baixo do seu ‘novo camelo’ um Toyota (avariado!), algures nos arredores do oásis saariano de Ghat (Líbia), em 1998.
Comentários
Além disso, ilumina a luta que se trava no Mali.