Crise académica de 1962

Testemunho de

Francisco Paiva

Há dias(maio de 2015),o meu neto Miguel (estudante universitário) em conversa, diz-me: mas, afinal qual foi o crime que tu cometeste quando foste castigado na Universidade em 1962?

Eu vou procurar explicar, mas adianto já que os Arquivos da Universidade de Coimbra também não conseguem explicar porque parece que o processo disciplinar desapareceu e só consta a pena aplicada sem os seus fundamentos, e isto é válido para os 32 estudantes castigados.

Venhamos então à História. Quando cheguei a Coimbra em 1955 a Associação Académica era liderada por uma facção conservadora que perdurava desde a década de 40 em que pontuaram Salgado Zenha e Almeida Santos entre outros. No 3.º ano da Faculdade ingressei na República dos Galifões ao mesmo tempo que obtinha uma maior consciencialização sociopolítica. No fim do 4.º ano fui eleito para a Comissão Central da Queima das Fitas cuja presidência pertencia por tradição ao estudante de medicina. Nesse ano também as eleições da AAC deram a vitória à corrente progressista liderada por Carlos Candal, finalista de Direito. Toda a postura mudou e saliente-se a publicação no jornal académico “Via Latina” da “Carta à jovem portuguesa” da autoria de Marinha de Campos, finalista de medicina e hoje psiquiatra.

Para as eleições de 1961-62 o Conselho de Repúblicas propôs o meu nome para a lista candidata (certamente pela minha postura pessoal e pela prestação na Comissão da Queima do ano anterior). Esta lista era composta pelo Lopes de Almeida, finalista de Direito,    para presidente, José Augusto Rocha, José Sumavielle e António Taborda (finalistas de Direito), David Rebelo e eu próprio(finalistas de medicina),Eduardo Soeiro(finalista de Letras),Margarida Lucas e Jorge Aguiar (3.º ano de Direito). Ganhámos as eleições contra a lista liderada por Nogueira de Brito(que veio a ser Secretário de Estado).O Lopes de Almeida foi mobilizado para a guerra colonial antes mesmo da tomada de posse. Decidiu-se que o Jorge Aguiar assumisse a presidência e o mesmo lhe aconteceu foi de imediato mobilizado. Entendeu então o grupo, que eu deveria assumir a presidência (eu estava isento do serviço militar porque a minha incorporação era de 1958 e a guerra colonial começou em 1961).

A direcção da AAC prosseguiu a postura progressista constante do programa eleitoral e decidiu propor às academias de Lisboa (secretário geral da RIA era Jorge Sampaio) e do Porto,  a realização do I Encontro Nacional de Estudantes, que mereceu logo a proibição do Ministro da Educação. Porém nós mantivemos a decisão do Encontro, o que obviamente desencadeou uma violenta campanha com intervenção policial. Por coincidência no dia de abertura do Encontro(9.3.1962) eu parti para Moçambique, satisfazendo a tradição de sempre qualquer deslocação de uma secção da AAC ser acompanhada por um elemento da direcção-geral, neste caso era o basquetebol. Claro que manifestei pública e oficialmente o meu apoio absoluto à realização do Encontro. Foi muito interessante a minha postura em Luanda e Lourenço Marques, em que nos discursos oficiais eu pude transmitir a postura da  AAC, o que foi acolhido com muito entusiasmo particularmente pelos anfitriões Drs. Almeida Santos e Soares de Melo.

Quando, algum tempo depois, fui interrogado no processo disciplinar pelo inquiridor e assistente da Faculdade de Direito e ex-presidente(de direita)da AAC Manuel Mesquita, tentou desligar-me da minha solidariedade, sugerindo-me que pelo facto de não ter estado fisicamente presente no Encontro, tal seria tomado em consideração. Entretanto a actividade continuava fervilhante, com assembleias magnas quentes, luto académico e anulação da Queima das Fitas de 1962,que causou sofrimento particularmente aos quartanistas. O tempo ia passando e em plena época de exames(2.7.1962)recebo no correio a comunicação de que por decisão do Senado Universitário, homologada pelo ministro Lopes de Almeida, fui expulso de todas as escolas nacionais por 2 anos com efeito imediato. No dia seguinte faria exame oral de Urologia, pelo que pedi para falar com o júri (Profs. Morais Zamith e Luís José Raposo) comunicando-lhes que não prestaria provas porque estava expulso pelo Senado (a que eles pertenciam !). Ficaram sem saber o que dizer.

Não senti gestos de solidariedade explícita por parte dos colegas. Comuniquei aos meus pais, regressei à Guarda onde constatei que no Governo Civil havia indicação para recusar    passaporte. Mas encontrei o ex-professor de religião e moral, Padre Inácio, que me propôs  participar num curso de cristandade!
Depois, resumidamente:

Inicio de 1963 emprego como delegado de propaganda médica concomitantemente com frequência voluntária(disciplina e funções de médico interno)do serviço de Medicina do Hosp. Sta. Maria e urgência semanal no Hospital S. José.
Outubro 63:casamento com as ajudas dos nossos pais + empregos (a Marília trabalhou 1 ano  na Escola primária do Bairro Alto). É justo lembrar que os meus pais custearam a minha vida desde sempre até à partida para o exílio em 1967(30 anos).
Julho de 64 e setembro de 65:nascimentos do Pedro e Rui.

Em outubro de 64 reinicio o 6.º ano na Fac. Medicina de Lisboa, mantendo o emprego. Estabeleci relações de amizade com novos colegas de curso, participei na récita de fim de curso e na viagem de curso - Itália, Áustria e Suíça. Aquisição por via mutualista do Montepio Geral dum apartamento em Alfragide. Após o estágio obrigatório(=7.º ano de Faculdade), defendi tese de licenciatura em 18.1.1967 e terminei então o emprego de delegado PM.

Ainda indeciso sobre o que fazer, integrei um grupo de estudo para preparação ao Concurso para o internato geral dos Hospitais Civis de Lisboa. Desse grupo já só me lembro do Souto Teixeira e do Brandão Rocha. Foi através do Souto que conheci o Branquinho. Fiz o concurso em março-abril tendo ficado classificado em 16.º lugar entre 64 concorrentes. Não cheguei a tomar posse, porque decidi então sair do país. A posse teria que ser homologada pelo poder político e por outro lado seria reinspeccionado como médico e em seguida mobilizado para a guerra colonial.

Saí do país em 10.5.67 e em 1 de junho comecei a trabalhar como interno residente num   hospital geral com 100 camas, na Suiça (H.Vallée de Joux). Um mês depois a Marília e os 2 filhos, Pedro (3 anos) e Rui (2 anos) juntaram-se-me e passámos a viver num pequeno apartamento simpático integrado dentro do hospital. Durante 6 meses acumulei com substituição no consultório privado de clinica geral.
Outubro de 68:internato de medicina interna no Hospital Cantonal de Friburgo. Fiz 2 substituições de 15 dias em medicina geral privada.

Janeiro 71:internato de ginecologia + obstetrícia no Hospital distrital de Martigny.
Abril 72:internato g/o na Clínica Universitária de Lausanne onde obtive o diploma federal da especialidade em 30.4.76.
Maio 76: regresso a Portugal e em 10.12.76 após múltiplas dificuldades burocráticas ingresso como especialista no Hospital Distrital de Portimão.
Abril 79: concurso nacional com provas teóricas e práticas para especialista dos hospitais.   Em ginecologia fiquei em 1ºlugar entre 9 concorrentes e em obstetrícia em 4º lugar entre 20 concorrentes, o que me permitiu entrar no quadro do Hospital de Faro em 14.1.1980.
Já que contei este capítulo, mas como não vou escrever Memórias nem blogs e como já escrevi um texto sobre Solidariedade, um dia destes escreverei outro sobre Hostilidades.
27.6.2015

Ponte Europa – Dado o interesse deste depoimento enviado a um grupo restrito de amigos do autor, pedi-lhe autorização para o divulgar. Aqui fica, como homenagem aos protagonistas da crise de 1962.

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