A Concordata de 2004

A cerimónia de despedida do núncio apostólico em Lisboa, em 2002 deixou as piores apreensões sobre os bastidores das negociações da Concordata.

O então MNE, Martins da Cruz (foto), prometeu o que não podia nem devia, o reforço da influência da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) no domínio «do ensino, da assistência social, da cultura, nos múltiplos domínios em que nos habituámos a ver uma Igreja ativa e empenhada em contribuir para a solução de problemas nacionais».

É sempre através das redes de assistência social [lares, hospitais, escolas, creches] que as Igrejas se infiltram para controlar o quotidiano dos cidadãos. A tragédia dos países islâmicos, onde a religião tem hoje a mesma influência que a ICAR tinha na Europa na Idade Média, devia fazer refletir os crentes e os não crentes. E, com total impunidade, afirmou ainda: «Como católico considero um privilégio ocupar a pasta dos Negócios Estrangeiros no momento desta importante negociação».

O país livrou-se do ministro e não se livrou da Concordata. A experiência de 1940 devia ter-nos vacinado contra a reincidência. A própria ICAR, que sofreu o ónus de se tornar refém da ditadura fascista, associada à repressão de meio século, devia evitar a tentação dos privilégios, embora quem tenha privilégios os julgue ‘direitos’.

Esta Concordata foi negociada à sorrelfa e não foi fácil aceder-lhe, mesmo alguns dias depois de assinada. Urge discutir o texto que, depois de ratificado, se tornou direito interno português, diretamente aplicável.

A religião não se impõe por tratados. A propagação da fé não se confia aos Estados. O mundo islâmico é o mais trágico exemplo. A Concordata, não pode ser um tratado de Tordesilhas que submeta à órbita do Vaticano um país a que a Cúria trace o meridiano. A subserviência à tiara não augurou nada de bom para o futuro que se queria plural e a revisão ficou à mercê do promíscuo contubérnio entre ministros de Deus e de Durão Barroso. O resultado está aí.

Não consta que a ICAR tenha sentido qualquer limitação ao exercício do múnus nestes anos de democracia. Que pretendia mais, ou o que pretendeu proibir?

A Concordata fere princípios de universalidade e igualdade de direitos e de obrigações, que a lei geral estabelece e acautela; opõe-se à lei geral na medida em que a ICAR exige tratamento especial naquilo que lhe diz respeito; e enuncia deveres religiosos como se o princípio da separação não impusesse ao Estado total alheamento em relação a esses ‘deveres’.

Por ser bizarro, cita-se o n.º 2 do Art.º 15: «A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do vinculo matrimonial, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio».

Imagine-se que, por reciprocidade, havia um n.º 3 com esta redação: «A República Portuguesa, reafirmando a doutrina do Estado sobre o casamento civil, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio civil o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade canónica de requerer o matrimónio religioso».

Enfim, a Concordata fere a laicidade do Estado e não era, nem é, precisa.

Talvez só o facto de ser assinada apenas por Durão Barroso e o cardeal Angelo Sodano nos tenha poupado à primeira frase da de 1940: «Em nome da Santíssima Trindade».

Ponte Europa / Sorumbático

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