A guerra colonial e os afetos - BCAÇ. 1936
No dia de hoje, há 48 anos, da amurada do Vera Cruz, olhámos destroçados o cais de Alcântara onde acenavam lenços de familiares desfeitos na pungência da despedida por entre os quais circulavam gajas sorridentes do Movimento Nacional Feminino, bufos e outros biltres da ditadura.
Seguiram-se vinte e seis meses e seis dias de degredo pelo crime de sermos portugueses. O cativeiro, dentro e fora do arame farpado, partilhando medos e ansiedade, forjou laços que só pode compreender quem o sofreu.
Há quem sinta a nostalgia do império e pense poder ter ganhado a guerra que foi ganha pela Frelimo, quem baralhe os algozes e as vítimas; outros não calam a revolta contra a guerra de que ainda é cedo para falar e não há já tempo. Todos trazemos dentro de nós a guerra, com fraturas expostas e a sangrar por dentro.
São essas marcas que nos unem na intensa afetividade que marcam os encontros anuais. Ontem, com uma deslumbrante vista sobre o Douro, matámos saudades no restaurante Varanda da Régua, ansiosos por novo encontro, algures, no ano que virá.
Ontem ainda, depois da surpresa feliz de reencontrar pela primeira vez ex-militares de Massangulo, que chegaram depois e lá ficaram, depois de escarafunchar feridas e trocar mágoas, lá debitei a homilia que a liturgia pede e os organizadores exigem, cada vez mais hesitante, a titubear uma espécie de mantra que todos as anos repito com ligeiras alterações.
Seguiram-se vinte e seis meses e seis dias de degredo pelo crime de sermos portugueses. O cativeiro, dentro e fora do arame farpado, partilhando medos e ansiedade, forjou laços que só pode compreender quem o sofreu.
Há quem sinta a nostalgia do império e pense poder ter ganhado a guerra que foi ganha pela Frelimo, quem baralhe os algozes e as vítimas; outros não calam a revolta contra a guerra de que ainda é cedo para falar e não há já tempo. Todos trazemos dentro de nós a guerra, com fraturas expostas e a sangrar por dentro.
São essas marcas que nos unem na intensa afetividade que marcam os encontros anuais. Ontem, com uma deslumbrante vista sobre o Douro, matámos saudades no restaurante Varanda da Régua, ansiosos por novo encontro, algures, no ano que virá.
Ontem ainda, depois da surpresa feliz de reencontrar pela primeira vez ex-militares de Massangulo, que chegaram depois e lá ficaram, depois de escarafunchar feridas e trocar mágoas, lá debitei a homilia que a liturgia pede e os organizadores exigem, cada vez mais hesitante, a titubear uma espécie de mantra que todos as anos repito com ligeiras alterações.
Comentários
No meu caso as reuniões dos ex-mobilizados realizam-se pela primavera (em data volante) e em terreno descampado transformando-se numa espécie de pic-nic onde cada um leva a sua merenda e a compartilha com os outros.
Muitas vezes venho dessas reuniões destroçado, fundamentalmente, com o tipo de linguagem que prevalece.
Passados 45 anos sob a data de regresso ainda é frequente ouvir termos como 'turras', 'províncias ultramarinas', etc.
Interrogo-me como foi possível condicionar de maneira tão prolongada e profunda as mentes das pessoas que, passado tanto tempo, revelam ainda não ter compreendido as causas, motivações políticas e interesses económicos da guerra colonial, feita contra os ventos da História.
De qualquer maneira, estes convívios são sempre uma experiência gratificante. Sinto que, em termos humanitários, não saí impune dessa estada por África. Sei que sobrevivemos, em condições extremamente adversas, apoiando-nos mutuamente. Foi possível criar uma pequena comunidade de homens solidários à margem de uma estricta vivência 'quarteleira' e belicista, que muitas vezes nos tentaram impor.
Não resisto a contar um pequeno episódio que vivi.
Quando um oficial superior encarregue da acção psicológica proferiu uma lengalenga sobre a 'defesa da Pátria' e um dos soldados questionou-me sobre o era isso.
Disse-lhe, um pouco a despachar, que a Pátria era, por exemplo, a nossa terra...
Rematou o soldado: Então o que estou aqui a fazer se não possuo eira nem beira? ...
Creio ter contribuído para que as pulsões reacionárias tenham sido contidas no Bcaç. 1936 que foi, aliás, comandado por um democrata o falecido coronel Luís Canejo Vilela que, logo nos primeiros dias me chamou para me informar de que a Pide pedira para eu ser vigiado, mostrando-me esse pedido, e dizendo que no seu batalhão não mandava a Pide.
Para além de tudo é mais sentida, e por isso mais forte e solidária, a amizade estabelecida no campo de batalha cimentada de constante entreajuda e socorros de sangue amassada pelo comum perigo de vida e, consequentemente, resiste a todas as diferenças de opinião sobre a guerra, suas consequências e políticas derivadas até hoje.
E também eu constatei, no caso de dois alferes nativos, que a Tropa, de maneira geral, não ligava bem com a intromissão da pide nos assuntos militares; podia obter informações vindas dessa banda mas nos assuntos da condução da guerra e dos seus soldados combatentes no mato, não gostava mesmo nada e pouco ligava aos "recados" políticos da dita pide.
E isso foi bom e salvou muito furriel e alferes milicianos de terem a sua vida seriamente complicada.