Tibi gratias, Libânia! - Texto de fim de semana
À Libânia
(Meretriz e filantropa)
Libânia (Libaninha). Não precisava de apelidos para ser referenciada. Continuam desnecessários para ser recordada.
No seu peito nunca brilhou uma comenda, mas a ele se aconchegaram muitas inseguranças em véspera de exames, muitas ansiedades a preceder esponsais, muitas inquietações à procura do primeiro emprego.
O seu corpo não teve a moldá-lo um escultor que o imortalizasse em bronze, mas teve milhares de corpos que, em êxtase, o ajudaram a modelar.
Três gerações de estudantes aprenderam nela a inutilidade do pecado solitário. Foi, por assim dizer, a primeira educadora sexual. Sem diploma.
Teve mais matrículas que o mais inveterado dos cábulas. E não chumbou por faltas, não lhe minguou a competência, nem se furtou às chamadas.
Não sendo culta foi uma mulher sábia. Não pertencendo a instituições de beneficência foi solidária. Foi tolerante, generosa e boa.
Pela sua casa passaram quase todas as profissões da cidade em busca dos préstimos da sua. Nivelou no tálamo as diferenças sociais que uma cidade beata e hipócrita fomentava.
Os estudantes foram a sua paixão. O seu consolo e a sua ruína. E a memória honesta que a recorda.
Mudou-se para Lisboa quando lhe fecharam a casa. Ali encontrou muitos dos seus estudantes queridos. Alguns haviam de virar-lhe as costas, senhores que a posição estragou, crápulas que o poder corrompeu. Mas a maior parte permaneceu fiel. Sem falsos pudores, sem actos de contrição, sem penitências.
Homenagear a Libânia, hoje, é um acto de humor e de amor. E um gesto de cultura. Trata-se de um manifesto contra a hipocrisia, duma vingança póstuma em defesa de quem foi vítima das aparências, dum libelo contra os guardiões da moral importada de uma qualquer Vulgata sem que, a nível pessoal, com ela se importem.
A Libânia era o desprendimento em pessoa. Parecia desprezar o óbolo que os mais endinheirados lhe deixavam, tanto quanto a remuneração do trabalho que efectuava.
Reagindo contra uma cultura que persegue o sucesso e o individualismo, contra uma postura que incensa o poder e o dinheiro, contra uma tradição que exalta a castidade e a abstinência, prestamos à Libânia a homenagem de quem a recorda com saudade e se não envergonha dos afectos que perduraram e percorrem as nossas vidas.
A vida de puta foi o ónus que a puta da vida lhe obrigou a pagar. A generosidade, a simpatia e a bondade foram as excelsas virtudes que a exornaram e a tornaram credora da homenagem que agora aqui lhe tributamos.
Com este acto ficamos mais aliviados de uma dívida que durante a vida nos perseguiu. E exorcizamos os demónios da hipocrisia.
Tibi gratias, Libânia!
In «A Guarda Formosa na Primeira Metade do Século XX», Pág. 403
Edição da Câmara Municipal da Guarda (Novembro de 2000)
(Meretriz e filantropa)
Libânia (Libaninha). Não precisava de apelidos para ser referenciada. Continuam desnecessários para ser recordada.
No seu peito nunca brilhou uma comenda, mas a ele se aconchegaram muitas inseguranças em véspera de exames, muitas ansiedades a preceder esponsais, muitas inquietações à procura do primeiro emprego.
O seu corpo não teve a moldá-lo um escultor que o imortalizasse em bronze, mas teve milhares de corpos que, em êxtase, o ajudaram a modelar.
Três gerações de estudantes aprenderam nela a inutilidade do pecado solitário. Foi, por assim dizer, a primeira educadora sexual. Sem diploma.
Teve mais matrículas que o mais inveterado dos cábulas. E não chumbou por faltas, não lhe minguou a competência, nem se furtou às chamadas.
Não sendo culta foi uma mulher sábia. Não pertencendo a instituições de beneficência foi solidária. Foi tolerante, generosa e boa.
Pela sua casa passaram quase todas as profissões da cidade em busca dos préstimos da sua. Nivelou no tálamo as diferenças sociais que uma cidade beata e hipócrita fomentava.
Os estudantes foram a sua paixão. O seu consolo e a sua ruína. E a memória honesta que a recorda.
Mudou-se para Lisboa quando lhe fecharam a casa. Ali encontrou muitos dos seus estudantes queridos. Alguns haviam de virar-lhe as costas, senhores que a posição estragou, crápulas que o poder corrompeu. Mas a maior parte permaneceu fiel. Sem falsos pudores, sem actos de contrição, sem penitências.
Homenagear a Libânia, hoje, é um acto de humor e de amor. E um gesto de cultura. Trata-se de um manifesto contra a hipocrisia, duma vingança póstuma em defesa de quem foi vítima das aparências, dum libelo contra os guardiões da moral importada de uma qualquer Vulgata sem que, a nível pessoal, com ela se importem.
A Libânia era o desprendimento em pessoa. Parecia desprezar o óbolo que os mais endinheirados lhe deixavam, tanto quanto a remuneração do trabalho que efectuava.
Reagindo contra uma cultura que persegue o sucesso e o individualismo, contra uma postura que incensa o poder e o dinheiro, contra uma tradição que exalta a castidade e a abstinência, prestamos à Libânia a homenagem de quem a recorda com saudade e se não envergonha dos afectos que perduraram e percorrem as nossas vidas.
A vida de puta foi o ónus que a puta da vida lhe obrigou a pagar. A generosidade, a simpatia e a bondade foram as excelsas virtudes que a exornaram e a tornaram credora da homenagem que agora aqui lhe tributamos.
Com este acto ficamos mais aliviados de uma dívida que durante a vida nos perseguiu. E exorcizamos os demónios da hipocrisia.
Tibi gratias, Libânia!
In «A Guarda Formosa na Primeira Metade do Século XX», Pág. 403
Edição da Câmara Municipal da Guarda (Novembro de 2000)
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