Marcelo: discrepâncias, itinerâncias e ‘novas vichyssoises’…
Marcelo Rebelo de Sousa tem desempenhado o cargo de Presidente da República com alguma inovação e o recurso a malabarismos ‘semi-populistas’ (de acordo com o semipresidencialismo do regime), onde tenta reduzir os problemas políticos e institucionais a questões centradas à volta das afetividades e distribuição de abraços a retalho e a preço de saldo.
O contraste desta posição com o ar grotesco e seráfico que Cavaco Silva imprimiu às suas duas presidências tem servido para realçar o mandato do atual Presidente.
Marcelo Rebelo de Sousa não é um anjo caído do céu para salvar o País. Tem um percurso de vida que começa cedo – nos tempos marcelistas - com algumas inflexões e múltiplos trambolhões que vão de um compulsivo devorador livresco, a uma carreira universitária expedita e informal que facilmente o guindou à docência, a um fluido compromisso com a ala liberal marcelista (sem incomodar o ‘padrinho’), uma entrada na política pós 25 Abril na direcção de um influente semanário, a uma pérfida rábula da vichyssoise, a uma insípida passagem pelo Governo, ao exibicionismo de uma maoísta travessia a nado do Tejo (numa já distante candidatura à Câmara Municipal de Lisboa), à descida de deus à terra para uma liderança frustrada do seu partido (convém não esquecer que Marcelo tem partido) e, finalmente, a um comentarista televisivo, de relapso frenesim dominical, que viria a abrir as portas da notoriedade pessoal e à eleição presidencial.
Tornou-se, depois da sua eleição para PR, um paladino de excitantes omnipresenças institucionais, alterando o austero estatuto de formalidades instaladas em Belém e, recentemente, encetou uma gigantesca deambulação pelo País transformando o desempenho do cargo num frenético rodopio, prenhe de gestos afetivos. O ‘barulho das luzes’ tem ofuscado (disfarçado) a rigorosa análise do exercício das funções para além dos fogos fátuos e, assim, vai conquistado um invejável apoio popular. Todavia, não será possível prolongar ad eternum o estado de graça.
É verdade que as catástrofes humanas e materiais associadas aos devastadores incêndios deste Verão/Outono deixaram o País apreensivo em relação à segurança das pessoas e bens e a orfandade requisita sempre a busca de soluções paternais (paternalistas). Os múltiplos receios e carências de vária ordem deixaram as pessoas muito susceptíveis, expostas e vulneráveis.
Concomitantemente, é insofismável que a gestão (política e operacional no terreno) da catástrofe de Pedrogão Grande deixou muito a desejar.
Alguma dessa inépcia tem razão de existir e fica a dever-se às tramitações do OE 2018 que ‘ocuparam politicamente’ o Executivo em morosas negociações com os parceiros que conferem apoio parlamentar ao Governo PS. Uma coisa será o tempo necessário para construir um Orçamento que seja a bissectriz das forças que o vão posteriormente sustentar na AR salvaguardando 'posições conjuntas', outra será estar em Belém à espera que lhe seja presente a redação final para promulgação.
Neste entretém, Marcelo andou à solta e foi cultivando uma relação de proximidade com as populações atingidas, com intervenções a retalho, não deixando cair a tragédia dos incêndios no esquecimento. Marcelo ficou, sorrateiro, no terreno desde Pedrogão Grande e quando a fatalidade ocorreu novamente, em Outubro, não foi preciso mexer um dedo para ganhar um substancial avanço sobre os outros órgãos institucionais para tomar a dianteira na condução do processo e definição de timings políticos.
O ‘inferno de 15 de Outubro’ impulsionou Marcelo para um novo e mais vasto período de manobras de campo. O Governo que se deixou aprisionar à volta de um relatório de uma Comissão Técnica independente terá hoje a noção que vacilou na antecipação de medidas – que se revelavam urgentes - e o desastre, contra as ‘normais’ previsões sazonais, voltou a assolar o País e deixando-o exposto e desguarnecido.
O primeiro-ministro foi apanhado em contrapé e rapidamente submerso por múltiplas fragilidades. A primeira terá sido a incapacidade de avaliar a ameaça de um Interior abandonado, de uma floresta caótica e mais concretamente de tirar lições sobre o impacto da tragédia de Pedrogão Grande que, como está presente nos espíritos, ocorreu no período pré-estival prenunciando todos os desastres. Contemporizou e deixou o Governo sentado em cima de um barril de pólvora. A permissividade de deixar o Verão prenhe destas fragilidades e inconformidades operacionais, foi arriscar muito.
Tudo parecia estar a recompor-se até que, já em meados de Outubro, ocorre novo desastre. Aí precipita-se tudo. O primeiro-ministro tenta salvar a face numa comunicação ao País que se revela desastrosa e Marcelo, numa atitude de ‘ratice’, refugia-se em Belém até a poeira assentar para, logo de seguida, partir desaustinadamente para o terreno deambulando entre os escombros e as populações desamparadas e fazer a partir do cenário trágico (Oliveira do Hospital) uma ardilosa alocução ao País onde questiona tudo e todos, excepto a si próprio.
Marcelo Rebelo de Sousa concentra os seus esforços em soluções imediatistas – que sendo importantes, ninguém o nega – , aquelas que têm um impacto direto, passando ao lado das grandes questões onde se entroncam os problemas que estão por detrás das recentes tragédias. Como sempre retira do bolso, quando as questões políticas se agudizam, um novo (e fantasioso) ‘pacto de regime’. Na sua mente os pactos têm uma geometria variável trucidando deste modo as diferentes opções políticas no altar de um desejável ‘interesse nacional’ que não está clara e inequivocamente definido.
Tem sido sempre assim. Ora, a solução governativa que foi encontrada depois das eleições de Outubro de 2015, é tudo menos esses fantasiosos ‘pactos’ que se apossaram do pensamento político presidencial. Vivemos tempos de fratura política e social que, quando procuramos e aprofundamos as suas causas, deparamos com divergências ideológicas e consequentemente diferentes visões sobre o País (presente e futuro). A atual solução governativa não deve ser entendida - como quis a Direita - como ‘golpista’, mas deve antes ser percebida como eminentemente reativa a políticas (neo)liberais que feriram gravemente as pessoas, danificaram a coesão nacional, separaram águas e, irremediavelmente, dificultam os miríficos consensos.
Na verdade, entre 2008 e 2015, existiu em surdina, mas dolorosamente, um ‘inferno monetarista’ que devastou a sociedade criando trincheiras políticas e ideológicas, carbonizando as esperanças de convergências.
Hoje, existem tarefas imediatas que não se podem (devem) juntar a este passado recente de sofrimento, de sacrifícios e de endémico empobrecimento. O País está confrontado com a necessidade de repor direitos e rendimentos e, depois das tragédias deste Verão, com a imperiosidade de reconstruir, com celeridade, casas destruídas, levantar as empresas carbonizadas e voltar a assegurar a vida nos campos (tarefa mais difícil). É um pouco a política pombalina de enterrar os mortos e tratar dos vivos.
Ignorar que existem fronteiras e diferentes ‘soluções’, sonhar com alucinantes pactos, é, de facto, instabilizar o País, corroer as soluções de Governo e fragilizar o regime. Ora isto é tudo o que um PR não deve fazer. Um presidente, qualquer presidente, terá o seu ‘estilo’. O problema é quando o estilo se esvazia de substância. Não vale a pena continuar a representar o papel de virginal vestal quando tudo à volta está em conspurcada ebulição.
Não há uma política florestal única (sem alternativas), não existe qualquer consenso sobre a política rural (entenda-se ‘desenvolvimento rural’), não existem estratégias para combater a desertificação, etc.. Os pactos, nestas circunstâncias, só podem assentar sobre vacuidades, alienações e circunstancialismos. Não precisamos desse tipo de pactos.
Por exemplo, uma das medidas que a devastação incendiária deveria ter inscrito como prioritária na ordem do dia, seria a rápida reposição dos serviços públicos que foram encerrados ou estrangulados no Interior (Tribunais, Escolas, CTT, etc.) durante a vigência do pragmatismo ultraliberal e austeritário do Governo Passos/Portas.
O recado do PR enviado de Andorra, há alguns meses atrás, afirmando que “quando vira à Direita, a direita não nota...” link não passa de mais uma redundância marcelista que está em consonância com a gestão presente da situação política.
O problema será o facto de Marcelo, nunca ter ‘virado’ porque 'nasceu aí e desde menino e moço assentou arraiais na Direita, cresceu nesse redil. Sendo um produto (aparentemente asséptico) da elite salazarista, progressivamente e ao ritmo do processo democrático em curso, foi sobrevivendo às mudanças à custa de um diáfano aggiornamento.
O Público de hoje relata uma situação que assume contornos de uma ‘nova vichyssoise’ link que vai de encontro a um percurso de vida e está destinada a ser servida – fria, supomos - no rescaldo dos trágicos incêndios.
Vamos ver os desenvolvimentos futuros desta situação. Se é verdade que a relação de confiança entre os cidadãos e os órgãos públicos foi traumatizada e abriu cruentas feridas será também notório que, no presente, a solidariedade institucional não vive uma boa fase. Como diz o ditado popular “uma desgraça nunca vem só”…
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