As IPSS e as circunstâncias …

É hoje comum tecer-se os mais rasgados elogios ao papel das IPSS, nomeadamente, a reboque do mais recente período de crise. Este veio realçar as insuficiências do Estado Social e as IPSS, todos verificamos, desempenharam um papel complementar no alívio dessas evidenciadas (pela crise) carências. Visível é um outro facto que é, diariamente, escamoteado: a liberalização económica (e financeira) aumentou as desigualdades sociais e colocou a ação social no centro das práticas de cidadania.

Até ao 25 de Abril e à Constituição de 1976 o papel das IPSS era definido como ‘supletivo’ pormenor que faz toda a diferença com a complementaridade atual. Passamos da atividade caritativa e assistencialista para a solidariedade dentro do conceito de Estado Social.

No que diz respeito à ‘Ação Social’ as relações entre o Estado e as instituições particulares de solidariedade foram sendo regulamentadas a partir de 1979 (Dec. Lei 519-G2/79 de 29 de dezembro) que estabelece o ‘Estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social’. Em 1980 foram definidas por despachos normativos as condições contratuais que passariam a vigorar nas relações entre o Estado e IPSS. Dois anos após, em 2002, entrou em vigor a Lei de Bases do Sistema de Solidariedade e Segurança Social (lei 32/2002, de 20 dezembro) onde se reconhece e valoriza a ação das IPSS e se define âmbitos de intervenção.
A última revisão constitucional (2005) estabelece um quadro de cooperação e de complementaridade entre o Estado e as IPSS (artº. 63, nº. 5) onde se consagram os princípios gerais de apoio e, sublinhe-se, se definem modelos de fiscalização.

No século XXI verifica-se o disparar do número de IPSS no terreno e estas vão absorver um elevada percentagem dos apoios públicos para a Ação Social (> 75%) envolvendo uma verba à volta de 1.600 M€/ano. Trata-se de apoios que ao mobilizar valores elevados do PIB tornam a fiscalização das verbas afetadas aos apoios de cooperação (público-privados) como uma imperiosa tarefa do Estado atribuída à Segurança Social.

A intervenção social das IPSS cresceu e disseminou-se, fundamentalmente, na dependência do incremento de ações de voluntariado, de filantropia e mecenato, mas não dispensa a contribuição de meios financeiros oriundos do Orçamento Geral do Estado, para uma eficaz prossecução das suas atividades de solidariedade social.
Na realidade, a grande maioria das IPSS que se dedica a atividades sociais (Lares de Idosos, Creches, Cantinas Sociais, Centros de Dia, Serviços de Apoio Domiciliário, etc.) não tem – para além da contribuição pública - muitas outras fontes para a angariação de fundos (doações, atividades desportivas, culturais, de lazer, etc.) que suportem orçamentalmente os objetivos sociais que se propõem realizar.

Em 2014 o regime estatutário das IPSS sofreu importantes alterações determinadas pela Segurança Social (Dec-Lei nº 172-A/2014 de 14 de novembro) com o pretexto de harmonização destas associações em termos de ação e fiscalização, que de algum modo cercearam a sua autonomia associativa e estatutária. Os Estatutos dessas associações tiveram de ser adaptados (normalizados) e a partir dai careciam de homologação pela Segurança Social para serem reconhecidos.
Pretendia-se desenvolver um regime jurídico de acordo com as subsidiariedades destas em relação ao financiamento público e responsabilizar os corpos gerentes. Pressupunha-se uma atividade de fiscalização e de ‘acompanhamento’ regular e intensa. A maioria das IPSS cumpriu a sua parte e sobre a responsabilidade da Segurança Social, em acompanhar os dinheiros públicos investidos numa diversificada ação social, estamos aqui para ver.

Desde logo, o ‘caso Raríssimas’ levanta muitas dúvidas. Dá a sensação de existirem filhos e enteados. Vamos aguardar serenamente a inspeção ordenada em cima do acontecimento e ainda os resultados da investigação do Ministério Público. Os ‘acompanhamentos’, como são designados os procedimentos de verificação pelos técnicos da Segurança Social devem ser universais e, desde logo, cegos. Ora, a IPSS ‘Raríssimas’ com uma existência de alguns anos e avultados investimentos públicos – ao que parece - passou indemne entre os pingos da chuva: nunca terá sido fiscalizada!

Mas existem outras inconformidades. O ‘desleixo’ não se confina à atividade de rotina de fiscalização da Segurança Social que, em primeiro lugar, terá de equacionar se dispõe (ou não) de recursos humanos qualificados para exercer com rigor e eficiência essa ação. Há, em Portugal, o terrível hábito de equacionar e definir funções para os serviços públicos e não dotar os organismos de meios humanos e orçamentais, tornando a ação fiscalizadora acidental e de deste modo enviesa a amostragem.

O expectável é que a partir deste ‘caso Raríssimas’ as IPSS - na sua maioria dependentes do voluntariado e da carolice dos cidadãos - sejam inundadas com a obrigatoriedade futura de produzir uma ‘cascata de papelada’ do tipo dos relatórios, balanços, balancetes e quejandos. Estas previsíveis medidas terão a nefasta ‘virtude’ de ocupar os corpos sociais das IPSS com uma infindável burocracia com notório prejuízo da ação social, cultural, desportiva e de lazer junto dos seus utentes. Na verdade, muitas vezes o mais eficaz é também o mais simples (e direto).

Por outro lado, e paralelamente, existem outras situações atípicas para não dizer iniquas. Um grande número de IPSS, que foram surgindo nos últimos 2 decénios, nasceu à sombra de instituições religiosas (religião católica, entenda-se), nomeadamente, são originárias dos Centros Sociais Paroquiais e das Misericórdias. Estas são instituições que à primeira vista contornam algumas das normas que definidas pelo Estatuto das IPSS (Dec.-Lei 172-A/2014 de 14 novembro), criando exceções estatutárias sob o pomposo mas dúbio nome de ‘compromissos’ (artº. 10 – item 4).

Isto é, as IPSS religiosas têm uma estrutura societária especial (‘irmandades’) e paralelamente com o cumprimento das diretivas dos órgãos da Segurança Social, devem obediência, prestam contas, ‘servem’ a hierarquia religiosa.
Ora os objetivos assistenciais podem não ser coincidentes mas o encaminhamento dos dinheiros públicos nunca poderá fugir ao controlo do direito ordinário da República. Estão essas IPSS, e o que mais perverso a ação das Instituições Públicas da Segurança Social, condicionadas pela Concordata em vigor.
Interessaria saber até que ponto esta circunstância, assente sob uma tutela dual, limita e influencia a atividade inspectiva.

É difícil entender para as IPSS ligadas às Misericórdias e Centros Sociais Paroquiais como esta ambivalência ‘pessoas jurídicas canónicas com personalidade jurídica civil’ baralha o controlo público . Não podem coexistir situações diferenciadas dentro do mesmo contexto.

O que parece líquido em termos de equidade é que os dinheiros públicos que têm apoiado o desenvolvimento de uma Ação Social e Solidária supletiva e são encaminhados para instituições de solidariedade social privadas devem obedecer às mesmas regras. Não pode existir um quadro legal e operacional rígido para as IPSS ‘laicas’ e outro mais flexível para o mesmo tipo de instituição de matriz religiosa.

Estas duas questões impendem sobre o futuro das IPSS. A burocratização versus iniquidades podem vir perturbar, para futuro, o desempenho das IPSS.

As lições políticas a tirar do ‘caso Raríssimas’ e as alterações para escrutinar o funcionamento (e o financiamento) das IPSS poderão não estar estritamente sediadas no interior das mesmas. As IPSS (todas!) qualquer que seja a sua origem e ‘emanação’ ao auferirem e gerirem dinheiros públicos devem estar sujeitas ao mesmo tipo e rigor de escrutínio.

Se é verdade que os ensinamentos a tirar relativos ao ‘caso Raríssimas’ devem incidir sobre formas eficazes e expeditas de fiscalização verificamos que estas já estão estabelecidas na Lei mas em algumas situações não cabalmente cumpridas. Mais correto será eliminar as ‘especiais circunstâncias’ que possibilitam o contornar das disposições legais.
Em relação às IPSS religiosas é necessário separar as águas onde começa e acaba o ‘direito canónico’ e impera o direito ordinário da República. É um assunto melindroso que vem questionar a Concordata pelo menos nos termos em que está redigida. É uma das razões porque sobre esta questão um sepulcral silêncio da Direita.

A principal ‘reforma’ neste domínio de intervenção social com dinheiros públicos é acabar com as excecionalidades. Estas não se resumem ao ‘caso da Raríssimas ‘ ou outros similares que eventualmente possam existir sub-repticiamente ou ao abrigo de acordos (como é o caso das ‘disposições leoninas’ da Concordata).

Finalmente, sabemos que existe um insidioso percurso identificado (estaria nos planos da anterior Direção da ‘Raríssimas’) para contornar este tipo de situações menos claras. É a passagem das IPSS a Fundações.
Para além de assegurar a transmissão dinástica da titularidade nos órgãos sociais surgem, no horizonte dos apoios sociais, culturais, desportivos e de lazer, abundantes suspeições de as Fundações poderão ser um instrumento para ‘escapar’ a um apertado controlo da fiscalização pública.

É urgente rever o estatuto (e regime jurídico) das Fundações (Lei 150/2015 de 10 setembro) para tonar mais límpido o ambiente que as envolve. Na realidade para além dos associados existem outras categorias de intervenientes como sejam os instituidores e herdeiros em que as maiorias estão ligadas a ‘posições dominantes’. Existindo vários modelos desde as ‘privadas’, as ‘públicas de direito público’, as ‘públicas de direito privado’ criaram-se múltiplas situações todas prenhes de particularidades. Desde logo, a capacidade de autorizar a sua constituição, que se concentra numa competência com cheiros de discricionariedade e de arbitrariedade ao restringi-la ao 1º. Ministro (ou a quem este delegar).
As Fundações (nomeadamente aquelas que reivindicam um papel de solidariedade social) são instituições com elevado valor social e cultural mas não podem transformar-se numa benesse para ex-políticos, banqueiros e grandes empresários simulando ser escapatória às atividades inspectivas (em principio estariam sujeitas à mesma regulamentação das IPSS), nem num alibi fiscal.
Um outro tipo de Fundações – as religiosas – sai novamente do âmbito destes enquadramentos legais sendo reguladas pela Lei da Liberdade Religiosa e pela Concordata.

E voltamos ao mesmo drama da transparência e que a pressão do momento pode ser tentadora para o afogar numa chusma de papéis. Interessaria reforçar o controlo público dos dinheiros públicos (uma evidente redundância), mantendo a liberdade criativa das associações e valorizar a intervenção social da sociedade civil.
Seria importante resistir à tentação de burocratizar ad nauseam as relações entre o Estado e essa sociedade civil.

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