Espanha, Catalunha e dilemas do presente…
As declarações de fim de ano do chefe do Governo espanhol não contribuem para a resolução do principal problema que enfrenta: a secessão da Catalunha.
Há uma frase esclarecedora: “A Espanha não pode ser chantageada e a Europa não dará reconhecimento nem legitimidade aos que violam a lei, como ficou demonstrado" link.
Deixemos de lado as questões europeias, importantíssimas, mas já sumariamente tratadas noutro post, e concentremo-nos na românica velha Hispânia.
Reduzir a questão catalã a uma chantagem pode servir para iludir a questão, prolongar o status quo que coloniza os círculos do poder madrilenos, mas os ‘espanhóis’ sabem bem que o problema não se resolve pela repressão, ou seja, à volta de eventuais atitudes repressivas e ameaçadoras, sempre dolorosas e fraturantes.
Aliás, como se pode verificar a aplicação estrita da Lei (o tão invocado artº. 155 da Constituição espanhola) não resolveu o problema e a convocação de eleições no país Catalão, tão pouco jogou a favor dos ditos ‘constitucionalistas’. Resta saber se o problema reside nos catalães que aspiram pela independência do seu país ou na lei que os condiciona.
A Constituição Espanhola nasce em circunstâncias específicas (especiais) e essa questão não pode ser iludida atribuindo-lhe um pretenso estatuto de ‘eternidade’.
A presunção de quem se mexe do seu ‘sítio’ apanha ‘porrada’, vai preso ou é deportado revela uma situação latente em toda a Espanha ou, melhor, em todas as comunidades espanholas.
E o problema não consegue passar ao lado de que o texto constitucional e a arquitectura político- administrativa daí decorrente, em que as limitadas autonomias são um exemplo de compromisso, é uma sequela viva do franquismo (acérrimo repressor de todos os movimentos autonómicos) que foi resolvido com generosidade, prudência, conciliação e ‘frieza’ na transição democrática que a morte do ditador colocou na ordem do dia.
Um ‘momento’ decisivo para o futuro da Hispânia (designação abrangente para espaço ibérico) mas sempre ensombrada por contexto político e histórico, potencialmente ‘explosivo’. O texto constitucional, aprovado em 1978, reflecte todos estes constrangimentos.
A Constituição Espanhola deve - por múltiplos motivos - ser entendida como um texto provisório, datado que, tendo permitido 40 anos de ‘pacificação’ política, social e cultural, cumpriu o seu papel, não pode ser esticada ad eternum.
Aliás, as clivagens são tão profundas que atingem as características essenciais do regime. O levantamento falangista contra a II República foi, na Constituição em vigor, consumado – de acordo com o desejo de Francisco Franco – pelo regresso da família Bourbon ao trono.
Na altura, esta ‘solução’ - plebiscitada conjuntamente com o texto da Lei Fundamental - diluiu o problema da restauração monárquica e contornou as ‘incertezas’ de um referendo, assumindo-se como um ‘mal menor’.
Não é obrigatório que continue a ser assim até porque as razões de 1978 perderam acutilância e até sentido. Se o velho conde de Barcelona, Juan de Bourbon, representava um ténue elo na rejeição (mais do que oposição) ao franquismo – esteve exilado em Portugal – e de certo modo condicionou a relutante aceitação do regresso à monarquia. Na época, todos os sobressaltos foram cirurgicamente evitados.
Hoje, a situação política, de ‘Espanha’ e a europeia, não é exatamente a mesma. Felipe VI não é o velho conde de Barcelona e deixou-se enredar na cega e teimosa estratégia soberanista de Rajoy. Esse alinhamento terá enormes custos para a monarquia espanhola.
Na verdade, o tempo para resolver a questão catalã – e outras que se colarão a reboque – urge. Cada dia que passa torna mais difícil, para todas as partes envolvidas, uma saída airosa. As negociações já deveriam estar em curso. Há o compromisso de uma maioria qualificada de partidos para que tal funcione. Tem de ser testada a vontade política do PP de Rajoy para alterar a Constituição, expressa quando foi necessária uma ampla convergência partidária (nomeadamente com o PSOE) para congregar amplo apoio institucional na ativação do fatídico artº. 155.
De fora, estão os Ciudadanos que nasceram para contrariar uma eventual 'Espanha das Nações' e, ocasionalmente, conseguiram arrecadar votos da Direita falangista nas eleições catalãs de 21 de dezembro dando-lhe uma expressão na Catalunha deslocada da implantação nacional.
A nível nacional o partido de Rivera não tem força nem condições políticas para travar o processo de revisão constitucional.
Po outro lado, Rajoy e Felipe VI perderam a oportunidade natalícia para indultar os dirigentes independentistas catalães (na prisão ou no exílio) e abrir caminho ao processo negocial.
Das várias soluções que estarão em cima da mesa negocial há denominador comum. Mudar a Constituição, adaptá-la às circunstâncias presentes e discutir abertamente o futuro da Espanha como um Estado integrador das várias nações que aí coabitam.
As declarações natalícias de Mariano Rajoy tendem a deixar a questão catalã apodrecer ao sabor do tempo e do cansaço são deveras preocupantes.
E o perigo maior será o reacendimento das sequelas da fratricida guerra civil. Evitar um conflito tendo por pano de fundo uma perturbante ‘memória histórica’, reactivada pelas comunidades que foram perseguidas pelo franquismo, é uma tarefa prioritária para todos que habitam o território da velha concepção romana de Hispânia.
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