Duas mulheres, dois gestos de heroísmo silencioso
A brutalidade da violência contra mulheres, perpetrada por tribunais islâmicos, de que a condenação à morte por lapidação, em caso de adultério, é apenas a ponta do icebergue da crueldade atávica, aparece com medonha regularidade referida na comunicação social.
Entre a indignação e a revolta vêm-me à memória, vá-se lá saber porquê, dois transplantes de órgãos ocorridos nos Hospitais da Universidade de Coimbra, ambos no ano de 2001.
1 – Num qualquer dia de Abril os médicos removeram uma fracção de fígado de uma mulher saudável. Não foi divulgado o nome nem a idade. Foi apenas uma mulher com muito amor, autora de um gesto nobre, paradigma encantador a dar conteúdo à palavra Mãe. Sem hesitações. Sem medo. Determinada. Serena. Abnegada.
Muito perto, noutra cama, esperava o pedaço de fígado da dádiva uma criança para quem a porção de víscera era condição de sobrevivência.
No sofrimento foi possível a generosidade da mãe, na angústia a esperança da filha, na agonia a vida de uma criança.
É uma história de amor verdadeiramente visceral. É um grito de esperança a ressoar numa vida que não desistiu. É um hino de solidariedade escrito por uma mãe que repetiu o parto e renovou a vida, poema de sangue escrito a bisturi com versos feitos de carne cosida com linha.
O tempo não será mais a medida destas vidas. Cada minuto foi uma centelha de eternidade. É preciso que os deuses tenham ensandecido para não recompensarem o gesto.
E nós, embevecidos com o milagre da cirurgia, nem nos damos conta do milagre maior que é o amor, sentimento que julgávamos já perdido algures entre a livre circulação de mercadorias e a acumulação contínua do capital.
Ficámos a saber que na bolsa de valores da consciência humana ainda há acções que valem a pena, porque são imunes aos humores e rumores do mercado, porque resistem à cotação do dólar e ao preço dos combustíveis fósseis, porque não dependem de ciclos económicos nem de jogos de poder.
Foi há quatro anos. Que será feito das vidas de mãe e filha esquecidas no turbilhão de escândalos e intermináveis guerras? Exceptuando o arquivo da unidade de transplantes não é fácil que alguém as recorde. A memória regista mais facilmente o que há de pusilânime e fere a inteligência. E a maternidade é um ofício ancestral que se faz de graça e com naturalidade.
2 – Em Outubro outra mulher saudável e ainda jovem doou um rim. Um acto simples, apenas o risco assumido da própria vida na coragem de um gesto decidido. À espera, noutra cama, estava o filho.
Dentro de cada mãe há sempre uma mulher que emerge do estigma das milenárias burkas, qual águia presa ao chão sem poder voar, e que, libertando-se com um simples bater de asas, parte as grilhetas do medo e estilhaça a tradição.
Podem cobrir a cabeça de uma mulher com medo de que o pensamento a liberte, ocultar-lhe o corpo para lhe embotarem os sentidos, mas é a alma que alguns homens lhe querem aprisionada com receio de que desperte para o sortilégio da vida.
Quem é capaz de decidir do seu próprio sacrifício é porque encontrou o amor. Quem sabe do que é capaz o corpo, descobriu antes o que podia o espírito. Uma mãe que dá um rim ao filho doente é uma mulher corajosa.
Se a mulher foi criada a partir da costela de um homem ficou-lhe com a melhor. Quem lhe exige a submissão teme-lhe a inteligência ou duvida de si próprio. E nunca saberá amar.
Em Portugal, há apenas três décadas, a mulher precisava de autorização do marido para transpor a fronteira, a magistratura e a carreira diplomática eram-lhe inacessíveis, os direitos mais elementares eram-lhe recusados. Em nome da tradição e da moral.
Depois, foi uma longa e exaltante caminhada no país de Abril. De mãos dadas com os homens, seus irmãos. A caminho da libertação, homens e mulheres.
Hoje, um pouco por todo o mundo, subsistem sinistros guardiões de uma moral obsoleta, beatos implacáveis que sujeitam as mulheres à mais cruel e infamante das submissões. Quem lhes adivinha o rancor que os devora? Quem continuará a permitir-lhes a crueldade de que a mulher é a vítima predilecta? Só a sofreguidão mística do paraíso pode conduzir à louca ambição de erradicar os infiéis, todos os infiéis, num proselitismo demente que atinge o êxtase na embriaguez da morte.
Em tais sociedades nenhuma mulher doará um rim. Não pode decidir como vestir-se e não lhe é permitido despir-se. Nem para doar um rim. Nem para amar. Nesses lugares a mulher não tem rins. Nem filhos. Simplesmente não existe, acorrentada pela violência da tradição e anulada pela atrocidade dos preconceitos.
Mas se à mulher é negado o direito à vida o homem fica condenado à morte.
É por isso que precisamos de libertar-nos das burkas em que pretendem enclausurar-nos, da genuflexão a que querem submeter-nos, do livro único que querem impor-nos, dos lugares santos para que querem virar-nos. É a liberdade que é preciso conquistar e preservar. Para todos, homens e mulheres. Em todo o tempo. Em qualquer lugar.
Entre a indignação e a revolta vêm-me à memória, vá-se lá saber porquê, dois transplantes de órgãos ocorridos nos Hospitais da Universidade de Coimbra, ambos no ano de 2001.
1 – Num qualquer dia de Abril os médicos removeram uma fracção de fígado de uma mulher saudável. Não foi divulgado o nome nem a idade. Foi apenas uma mulher com muito amor, autora de um gesto nobre, paradigma encantador a dar conteúdo à palavra Mãe. Sem hesitações. Sem medo. Determinada. Serena. Abnegada.
Muito perto, noutra cama, esperava o pedaço de fígado da dádiva uma criança para quem a porção de víscera era condição de sobrevivência.
No sofrimento foi possível a generosidade da mãe, na angústia a esperança da filha, na agonia a vida de uma criança.
É uma história de amor verdadeiramente visceral. É um grito de esperança a ressoar numa vida que não desistiu. É um hino de solidariedade escrito por uma mãe que repetiu o parto e renovou a vida, poema de sangue escrito a bisturi com versos feitos de carne cosida com linha.
O tempo não será mais a medida destas vidas. Cada minuto foi uma centelha de eternidade. É preciso que os deuses tenham ensandecido para não recompensarem o gesto.
E nós, embevecidos com o milagre da cirurgia, nem nos damos conta do milagre maior que é o amor, sentimento que julgávamos já perdido algures entre a livre circulação de mercadorias e a acumulação contínua do capital.
Ficámos a saber que na bolsa de valores da consciência humana ainda há acções que valem a pena, porque são imunes aos humores e rumores do mercado, porque resistem à cotação do dólar e ao preço dos combustíveis fósseis, porque não dependem de ciclos económicos nem de jogos de poder.
Foi há quatro anos. Que será feito das vidas de mãe e filha esquecidas no turbilhão de escândalos e intermináveis guerras? Exceptuando o arquivo da unidade de transplantes não é fácil que alguém as recorde. A memória regista mais facilmente o que há de pusilânime e fere a inteligência. E a maternidade é um ofício ancestral que se faz de graça e com naturalidade.
2 – Em Outubro outra mulher saudável e ainda jovem doou um rim. Um acto simples, apenas o risco assumido da própria vida na coragem de um gesto decidido. À espera, noutra cama, estava o filho.
Dentro de cada mãe há sempre uma mulher que emerge do estigma das milenárias burkas, qual águia presa ao chão sem poder voar, e que, libertando-se com um simples bater de asas, parte as grilhetas do medo e estilhaça a tradição.
Podem cobrir a cabeça de uma mulher com medo de que o pensamento a liberte, ocultar-lhe o corpo para lhe embotarem os sentidos, mas é a alma que alguns homens lhe querem aprisionada com receio de que desperte para o sortilégio da vida.
Quem é capaz de decidir do seu próprio sacrifício é porque encontrou o amor. Quem sabe do que é capaz o corpo, descobriu antes o que podia o espírito. Uma mãe que dá um rim ao filho doente é uma mulher corajosa.
Se a mulher foi criada a partir da costela de um homem ficou-lhe com a melhor. Quem lhe exige a submissão teme-lhe a inteligência ou duvida de si próprio. E nunca saberá amar.
Em Portugal, há apenas três décadas, a mulher precisava de autorização do marido para transpor a fronteira, a magistratura e a carreira diplomática eram-lhe inacessíveis, os direitos mais elementares eram-lhe recusados. Em nome da tradição e da moral.
Depois, foi uma longa e exaltante caminhada no país de Abril. De mãos dadas com os homens, seus irmãos. A caminho da libertação, homens e mulheres.
Hoje, um pouco por todo o mundo, subsistem sinistros guardiões de uma moral obsoleta, beatos implacáveis que sujeitam as mulheres à mais cruel e infamante das submissões. Quem lhes adivinha o rancor que os devora? Quem continuará a permitir-lhes a crueldade de que a mulher é a vítima predilecta? Só a sofreguidão mística do paraíso pode conduzir à louca ambição de erradicar os infiéis, todos os infiéis, num proselitismo demente que atinge o êxtase na embriaguez da morte.
Em tais sociedades nenhuma mulher doará um rim. Não pode decidir como vestir-se e não lhe é permitido despir-se. Nem para doar um rim. Nem para amar. Nesses lugares a mulher não tem rins. Nem filhos. Simplesmente não existe, acorrentada pela violência da tradição e anulada pela atrocidade dos preconceitos.
Mas se à mulher é negado o direito à vida o homem fica condenado à morte.
É por isso que precisamos de libertar-nos das burkas em que pretendem enclausurar-nos, da genuflexão a que querem submeter-nos, do livro único que querem impor-nos, dos lugares santos para que querem virar-nos. É a liberdade que é preciso conquistar e preservar. Para todos, homens e mulheres. Em todo o tempo. Em qualquer lugar.
Comentários
Subscrevo pois as palavras deste belo texto.
era uma chalaça....
udall scholarship nomination form Food safety training online streaming Dog racing nottingham nanaimo surveillance equipment Rating public universities ultimate soldier toy Callcenter in zoetermeer online payment