O primeiro sargento Marcolino (crónica)
O primeiro sargento Marcolino expressava-se num português rudimentar, com poucas centenas de palavras, mas era prolixo no vernáculo enriquecido por sucessivas gerações de almocreves e laboriosamente cultivado nas casernas. Usava-o profusamente na instrução da milícia para constituir, com o manejo das armas, a totalidade do programa de formação dos cadetes, além de ser uma ferramenta preciosa na comunicação com os soldados que, das aldeias, iam fazer a recruta.
Interessam aqui os cadetes, alunos do ensino secundário, maiores de 18 anos, que, sob os auspícios da Mocidade Portuguesa, se iniciavam aos sábados, no quartel da cidade, no manejo das armas e no aprofundamento da linguagem de caserna, instruídos pelo primeiro sargento Marcolino.
Era sob a sua orientação que no 1.º de Dezembro integravam, com espingardas, a cauda de um grandioso desfile com lusitos à frente, infantes a seguir e vanguardistas depois, a marchar pela cidade da Guarda, em grupos de 3 castelos, divididos em quinas, a arrostar temperaturas negativas.
Ao som do “Lá vamos, cantando e rindo..., levados, levados sim...”, garbosos, percorríamos um longo itinerário que conduzia até próximo do ponto de partida, do liceu até à Sé, com tambores a rufar, para marcar a cadência, e um clarim para ordenar o início e o alto da marcha, o firme e o sentido, o descansar e o à vontade.
O Dr. Ramalho, comissário da Mocidade Portuguesa, esperava-nos junto à Sé, à frente de um grupo de professores, embevecido, a ver o exército de fedelhos com a farda em desalinho, orgulhoso dos seus meninos a desfilar com o S no cinto e ar marcial, a entrar, sem inimigo à vista, no espaço sagrado, para acalmar os ímpetos, assistir à missa e receber a eucaristia.
Calcule-se a aflição, à elevação da hóstia, quando o clarim anunciou a sua iminente consubstanciação, ou a descida do Espírito Santo, ou a posição de sentido que precedia as exéquias, já não sei bem, e o Zé Calheiros, que comandava a guarda de honra destacada para o altar, tropeçou no degrau e deixou cair a espada, com estrépito, nas lajes frias da Sé. O primeiro sargento Marcolino, temendo que a consubstanciação não acontecesse, que o brilho da cerimónia perigasse, ou, quem sabe, agastado apenas pela compostura perturbada, tomou o exemplo de Cristo, quando azorragou no templo os fariseus, e, menos contido nas palavras, alheio ao evangelho, resvalou para a blasfémia, a esgotar a poderosa reserva de impropérios aperfeiçoada em décadas de caserna e numerosas recrutas.
A voz do primeiro sargento Marcolino, a admoestar o azarado, suspendeu a hóstia no ar com o oficiante a aguardar a oportunidade de a consagrar em silêncio, ansioso de ver contidos o riso de todos, a estupefacção devota dos professores e o rubor das meninas, que tinham obrigação de desconhecer a linguagem, com a cerimónia, que o frio e a experiência do oficiante deveriam tornar rápida, a prolongar-se e a perder a solenidade e o brilhantismo.
Só depois do regresso à normalidade, abençoada a sagrada espécie, ministrada a comunhão e terminado o santo sacrifício, o exército se pôs em marcha, em sentido inverso, rumo ao ponto de partida, ansioso por destroçar à voz do comandante de falange que, depois de fazer a saudação fascista ao Dr. Ramalho, que, de novo, nos aguardava, obteve autorização para mandar destroçar a tropa, ordenando aos comandantes de bandeira que autorizassem os de castelo a desfazer as quinas cujos lusitos, infantes e vanguardistas ansiavam por aconchegar as mão nos bolsos e pôr os calcanhares a rodar em direcção a casa.
Recordo-me de ter visto o primeiro sargento Marcolino, pela última vez, à janela da casa onde morava, junto ao jardim municipal, a chamar a filha que tinha acabado de se integrar no grupo de finalistas da escola do Magistério que se formara desde o Bonfim, a caminho do exame de estado, a gritar:
– ó Milu!!!
– diga, senhor pai...
– quando souberes..., fazes, quando não souberes..., merda,
e o pijama às riscas a desaparecer da janela, a sumir-se na penumbra do quarto, deixando no ar o eco de um último conselho paternal e o som da janela de guilhotina a cair desamparada no peitoril.
Interessam aqui os cadetes, alunos do ensino secundário, maiores de 18 anos, que, sob os auspícios da Mocidade Portuguesa, se iniciavam aos sábados, no quartel da cidade, no manejo das armas e no aprofundamento da linguagem de caserna, instruídos pelo primeiro sargento Marcolino.
Era sob a sua orientação que no 1.º de Dezembro integravam, com espingardas, a cauda de um grandioso desfile com lusitos à frente, infantes a seguir e vanguardistas depois, a marchar pela cidade da Guarda, em grupos de 3 castelos, divididos em quinas, a arrostar temperaturas negativas.
Ao som do “Lá vamos, cantando e rindo..., levados, levados sim...”, garbosos, percorríamos um longo itinerário que conduzia até próximo do ponto de partida, do liceu até à Sé, com tambores a rufar, para marcar a cadência, e um clarim para ordenar o início e o alto da marcha, o firme e o sentido, o descansar e o à vontade.
O Dr. Ramalho, comissário da Mocidade Portuguesa, esperava-nos junto à Sé, à frente de um grupo de professores, embevecido, a ver o exército de fedelhos com a farda em desalinho, orgulhoso dos seus meninos a desfilar com o S no cinto e ar marcial, a entrar, sem inimigo à vista, no espaço sagrado, para acalmar os ímpetos, assistir à missa e receber a eucaristia.
Calcule-se a aflição, à elevação da hóstia, quando o clarim anunciou a sua iminente consubstanciação, ou a descida do Espírito Santo, ou a posição de sentido que precedia as exéquias, já não sei bem, e o Zé Calheiros, que comandava a guarda de honra destacada para o altar, tropeçou no degrau e deixou cair a espada, com estrépito, nas lajes frias da Sé. O primeiro sargento Marcolino, temendo que a consubstanciação não acontecesse, que o brilho da cerimónia perigasse, ou, quem sabe, agastado apenas pela compostura perturbada, tomou o exemplo de Cristo, quando azorragou no templo os fariseus, e, menos contido nas palavras, alheio ao evangelho, resvalou para a blasfémia, a esgotar a poderosa reserva de impropérios aperfeiçoada em décadas de caserna e numerosas recrutas.
A voz do primeiro sargento Marcolino, a admoestar o azarado, suspendeu a hóstia no ar com o oficiante a aguardar a oportunidade de a consagrar em silêncio, ansioso de ver contidos o riso de todos, a estupefacção devota dos professores e o rubor das meninas, que tinham obrigação de desconhecer a linguagem, com a cerimónia, que o frio e a experiência do oficiante deveriam tornar rápida, a prolongar-se e a perder a solenidade e o brilhantismo.
Só depois do regresso à normalidade, abençoada a sagrada espécie, ministrada a comunhão e terminado o santo sacrifício, o exército se pôs em marcha, em sentido inverso, rumo ao ponto de partida, ansioso por destroçar à voz do comandante de falange que, depois de fazer a saudação fascista ao Dr. Ramalho, que, de novo, nos aguardava, obteve autorização para mandar destroçar a tropa, ordenando aos comandantes de bandeira que autorizassem os de castelo a desfazer as quinas cujos lusitos, infantes e vanguardistas ansiavam por aconchegar as mão nos bolsos e pôr os calcanhares a rodar em direcção a casa.
Recordo-me de ter visto o primeiro sargento Marcolino, pela última vez, à janela da casa onde morava, junto ao jardim municipal, a chamar a filha que tinha acabado de se integrar no grupo de finalistas da escola do Magistério que se formara desde o Bonfim, a caminho do exame de estado, a gritar:
– ó Milu!!!
– diga, senhor pai...
– quando souberes..., fazes, quando não souberes..., merda,
e o pijama às riscas a desaparecer da janela, a sumir-se na penumbra do quarto, deixando no ar o eco de um último conselho paternal e o som da janela de guilhotina a cair desamparada no peitoril.
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