Jamahiriya e o fim trágico de uma utopia…

O jovem coronel Muamar Kadafi, após o derrube , em 1969, do rei Idris – uma consequência da II Guerra Mundial - concebeu para a Líbia uma sociedade dividida em clãs e tribos com imensas diversidades culturais e interesses antagónicos um “regime popular de massas” apoiado em “comités populares” [que actuavam diversos níveis da organização tribal] tendo reservado para si o papel de “líder revolucionário” ou de “guia da Revolução”.

Passou a denominar oficialmente a Líbia como: Grande Jamahiriya Árabe Popular Socialista da Líbia cujo órgão máximo do poder seria o “Congresso Geral Popular”, emanado dos comités locais.

Jamahiriya é um neologismo criado por Kadafi, em 1977, que transpôs para o seu “Livro Verde” [onde colecta as ideias-chave do regime] e deriva do conceito jumhūrīya [que em árabe significa República] para designar um “estado de massas” emanado de uma “democracia directa”. Para conseguir esse objectivo “desconstrói” com “éditos revolucionários” – dois são fulcrais: o de 11.12. 1969 e o de 02.03.1977 - o conceito de “Estado-Nação”. No terreno, pontificam velhas disputas tribais que – apesar dos esforços de Kadafi - não consegue esbater, nem controlar a sua pesada influência política e moral sobre os diferentes clãs. Resta-lhe, com o dinheiro do petróleo comprar fidelidades e tentar dirimir conflitos. Ao fim e ao cabo, uma versão moderna do conceito medievo do filósofo e político magrebino Ibn Khaldun – asabiyah – que se debruça sobre a solidariedade e coesão social, fomenta a consciência de grupo, sob uma forma embrionária de nacionalismo adaptado às características berberes [nómadas]. link

Muamar Kadafi conseguiu, durante 4 décadas, gerir fracturas tribais políticas, sociais e culturais através dos comités populares [órgãos executivos] e os comités revolucionários [órgãos políticos], proibindo os partidos políticos [logo eliminando oposições] e controlando a Imprensa [logo sem informação livre].

Deu corpo, deste modo, um regime autocrático e repressivo que vigorou até ao presente, assente em equilíbrios precários, gerindo os conflitos entre clãs, através de um núcleo duro, sustentado por “fiéis”, em que a “sua” pequena tribo kadafa preponderava. Mais uma vez um regime autocrático privilegia a reapartição do poder pelos circulos familiares e de compadrio, criando um grupo que, para além do exercício político, captura a economia e as finanças e, no seu interior, tenta perpetuar-se, à boa maneira dinástica.


Os problemas que – ao longo de 40 anos - se acumularam na Líbia dizem, essencialmente, respeito a uma obtusa redistribuição dos enormes proventos resultantes da exploração do petróleo e do gás natural. E o centro da contestação “nasce” precisamente na Cirenaica, mais concretamente na cidade de Benghazi, "capital" do petróleo líbio, onde, desde os finais do séc. XX, se registaram levantamentos contra Kadafi, na altura, protagonizados por extremistas islâmicos [Grupo Islâmico Líbia], reprimidos a ferro e fogo ou, os sobreviventes, encarcerados na tenebrosa prisão de Abu Slim… Aliás, Benzhazi nunca apoiou abertamente a revolta dos jovens oficiais contra o rei Idris…

Cirenaica a partir dos finais do séc. XX [a partir das tentativas de rebelião] foi excluída do arbitrário e iníquo sistema de distribuição dos rendimentos do petróleo…para além de outras humilhações, provavelmente relacionadas com a dificuldade de concertação entre as tribos cirenaicas [beduínas] e tribos berberes [como a Kadafa].

Para além da desigual partilha dos proventos petrolíferos [com inegável prejuízo das regiões leste da Líbia], a existência de desemprego estrutural de cerca de 30% da força de trabalho, afectando essencialmente os jovens [muitos com formação técnica], acabou por intensificar as torrentes da revolta. É no envolvimento de uma juventude desiludida e sem trabalho que a revolta líbia, de alguma forma, coincide com os levantamentos populares ocorridos recentemente na Tunísia e no Egipto.

A “posse” e o controlo de uma discricionária e inaceitável utilização do sistema de redistribuição da riqueza, supervisionada pelo circulo íntimo de Kadafi, não consegue satisfazer os anseios das tribos que, na melhor tradição do tribalismo, rivalizam umas com as outras. As discriminações da liderança líbia no contacto com as diferentes tribos e desproporcionados [bárbaros] fenómenos de violência e repressão, acabaram por ferir a honra de algumas tribos. E afrontas deste tipo, numa sociedade regida por conceitos tribalistas, não têm solução. Lavam-se em sangue.

Os alicerces da Jamahiriya esboroam-se quando os líderes da tribo Warfala [uma das mais influentes e numerosas da Líbia], depois dos massacres perpetuados por forças afectas à clique de Muammar Kadafi, que ocorreram há alguns dias em Benghazi, denunciaram a ilegitimidade da repressão desencadeada pelo excêntrico déspota. A partir daí a Líbia deixa de ser um País e passa a ser uma manta de retalhos, com um singular denominador comum: todos contra Kadafi!

É deste modo, e nestas circunstâncias, que a Jamahiriya acabará por fenecer. Face a este inevitável desfecho o seu “criador” tornou-se um empecilho, neste momento, entrincheirado em Tripoli. Passou de líder a proscrito.


O que virá depois da Jamahiriya? Uma incógnita! Todavia, pior será difícil.

Comentários

pior será fácil

díficil será impossível
É de lamentar que o Kadhafi não tivesse tido a lucidez suficiente
para unir as Tribos,pois dessa desunião,dêsse desentendimento,
dessa xenofobia,dessa rivalidade tribal,só que quem terá tirado ou
ainda tira proveito,é o anglo-saxão
Imperialismo com destaque para os
USA que abUSA de tudo e de todos
assim como o biblico Sionismo que
não acata as resoluções da ONU.
O Kadhafi tornou-se uma espécie de
Régulo tribal e sua atitude parece a deu um alucinado ou drogado.
Anónimo disse…
Incrível estes posts sobre esta situação nesta zona geo-estratégica, riquíssima em petróleo, que os EUA imperialistas e seus lacaios querem à viva-força "governar". Leiam artigos como este:
http://resistir.info/africa/libia_23fev11.html
Ficarão talvez um pouco mais instruídos; ou livros como os de Chomsky, nomeadamente "IRAQUE-Assalto ao Médio Oriente" e saberão o que são "países de fachada árabe", que a Líbia nunca foi, apesar de não ser um regime "perfeito", mas há que encarar o contexto das coisas, especialmente quando elas se passam em regiões como esta!!!
foi um sistema bonito

mas qualquer sistema tem seus entraves e suas élites que necessitam de luxos extra para os sacrifícios que fazem

agora dizer que pior era impossível

desde angola à democrática África do Sul vive-se pior que se vivia na líbia khadafiana
agora chamar a um regime imperfeito

que era uma utopia apenas no papel

que massacrou uns 50mil dissidentes

que enforcou como exemplo ao velho estilo alemão os chefes da palhota que se revoltavam

era mau
mas pode ficar muito pior
Unknown disse…
pelo que tenho lido Kadhafi tem dificuldade em administrar a ambição dentro de sua própria família;
inexiste unidade entre as tribos, mas será que é relevante?
talvez o pior é que kadhafi não tornou a Líbia subserviente às potencias hegemonicas, principalmente aos eua, a qual necessitando expandir economicamente - suas empresas estão excluidas da líbia - e talvez sentindo inveja dos investimentos da china na líbia, por isso terá que enfrentar a ira dos eua, a qual cometerá de novo o genocídio iraquiano?

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