A milenar ‘Insurgência Curda’ e uma nova versão dos Tratados de Sévres e de Lausanne…
A evolução da situação no Médio Oriente, nomeadamente a intervenção militar turca directa na Síria contra posições fronteiriças dominadas pelo Daesh tendo, ao mesmo tempo, na mira de um destroçar (esmagar) das forças curdas, que têm combatido o terrorismo reinante na região, veio ensombrar a situação política nesta convulsiva área e deu origem a uma inflexão estratégica (cambalhota), por parte dos EUA, o ‘orquestrador’ da coligação multinacional contra o ‘jihadismo fundamentalista’ de um pretendido novo ‘califado’.
Até aqui os EUA tem municiado e apoiado as forças curdas na luta que, já há algum tempo, travam, quer na Síria, quer no Iraque, contra as posições do Daesh nesses países. Uma espécie de ‘carne para canhão’ supostamente a troco de uma pátria. Agora, parece estar em curso uma nova inflexão parasitária dos interesses turcos (um forte aliado da NATO).
Os curdos foram - nos últimos dias - ameaçados de serem enxotados para além (leste) do Eufrates (numa notória contração do seu território histórico) e, enquanto Joe Biden dava explicações a Erdogan sobre o posicionamento e perspectivas dos EUA após o falhado golpe militar, nas suas barbas (ou com a sua bênção), os turcos atacavam simultaneamente forças do Daesh e curdas (metendo tudo no mesmo saco), conquistando deste modo (a Turquia) espaço e influência naquela região do globo.
Mais uma vez os EUA, enquanto potência hegemónica mundial, tiram, no momento crítico, o tapete aos curdos. Em causa estão velhas guerras entre curdos e turcos que remontam a tempos muito recuados mas que conheceram um sobressalto no fim do império otomano e daí para cá nunca mais tiveram conserto. A trajectória dos movimentos autonomistas ou independentistas curdos, ao longo dos séculos XX e XXI, sendo longa, complexa e impossível de pormenorizar num post, tem episódios deveras elucidativos de como os nebulosos interesses ‘globais’ (ou 'imperiais') sempre tratam dos problemas e aspirações dos povos.
Na derrocada do império otomano, ditado pelos vencedores da I Guerra Mundial, os curdos - que tinham na região contribuído decisivamente para o desfecho final - viram os seus direitos nacionais reconhecidos na Conferência de Sévres (1919).
Nesta conferência, em que Portugal participou enquanto litigante vencedor, através de Afonso Costa, foi reconhecida a identidade desse povo e ficou explícito o seu direito a constituir uma nação, no seu território histórico. Na realidade, o território natural deste povo foi e continua a ser o grande problema já que, ocupando partes da Turquia, Iraque, Irão e Síria, chocava com as delimitações (concepções estratégicas) desenhadas a régua e esquadro pelas ‘potências vencedoras’ para novas fronteiras saídas do pós-guerra e nunca obteve o acordo da Turquia.
Aliás, o problema turco não se limitava só à questão curda, abrangendo também os arménios.
Três após - na Conferência de Lausanne (1923) - quando foram revistos, sedimentados e reescritos os acordos alcançados em Sévres, os curdos foram olimpicamente ignorados. Esta quebra de compromissos vai originar uma luta sem quartel pela autodeterminação curda, subsidiária de um nascente novo estado turco moderno, sob a direcção de Kemal Atatürk, que resolve ostracizá-los, esvaziar esta etnia da identidade (proibir a língua e as expressões culturais e, finalmente, acantonar os curdos da Turquia (chamam-lhes ‘turcos das montanhas’), rigorosamente controlados, numa parte da Anatólia.
Ao longo da década de 30 sucedem-se as revoltas curdas e as violentas respostas musculadas turcas que passam sistematicamente por massacres e deportações em massa de populações curdas um pouco ao estilo do ‘genocídio arménio’.
No seguimento da II Guerra Mundial (1946), o foco de tensões centra-se no Irão onde foi implantada uma efémera República do Curdistão (Mahabad), logo seguida de uma violenta repressão.
Nos anos 70 reacende-se a luta pela autodeterminação curda centrada no Iraque e durante a governação de Saddam Hussein, onde tudo serviu para dizimar este povo, incluindo as armas químicas que se entenderá até meados dos anos 80 (quando estava em curso uma guerra Irão-Iraque). É nesta altura que se notabiliza – pelos piores motivos – um membro do Governo de Bagdad, que ficou conhecido ‘por Ali, o químico’. As sequelas destas intervenções viriam a desembocar numa situação dramática originando uma ‘guerra civil curda’).
Nos anos 80 a repressão concentra-se no afrontamento e destruição do PKK (organização política que luta pela emancipação dos povos curdos) levada a efeito pelos governos instalados em Ankara e que tem mantido um percurso errático ao sabor das inflexões internas da política turca.
No presente, e no conflito em que o Médio Oriente vive, os curdos têm alinhado na ‘frente anti-Assad’ mas, têm mantido uma distância dos fundamentalistas islâmicos – nomeadamente do grupo Jabath al Nushra - funcionando como um tampão entre o jihadismo intolerante do Oriente Médio e o Ocidente (para usar conceitos cartográficos).
As suas forças, presentes no (seu) terreno (histórico), têm dado uma luta sem tréguas ao Daesh que, à luz da História, não deixam de ser o novo ocupante de território curdo (quer no Iraque quer na Síria).
As forças curdas têm sido apoiadas pela coligação internacional ‘anti-Daesh’, nomeadamente com apoio de meios aéreos e fornecimento de equipamento militar, como foi bem visível na batalha por Kobani, junto à fronteira turca, onde o distanciamento do governo de Erdogan impressionou pela tibieza e duplicidade.
O envolvimento curdo no terreno sucede por dois motivos essenciais: primeiro a luta pela sobrevivência de um povo; depois, a necessidade de ocupar um território para esse mesmo povo. Esta segunda premissa está em vias de ser novamente torpedeada como foi no passado no curto espaço que decorreu entre as conferências de Sévres e Lausanne.
Os últimos desenvolvimentos na região podem resumir-se neste 'exemplar' episódio de 'política externa'.
Joe Biden, vice-presidente dos EUA, no final de Agosto, deslocou-se à Turquia na sequência do falhado golpe de Estado. Levou a visão e as explicações de Washington exibindo uma nova versão da ‘pax americana’ sobre a hegemonia regional. Foi, no contexto ‘atlantista’ (NATO), ‘obrigado’ a assistir (e a apoiar) uma intervenção militar turca em território sírio que tinha objectivos bem explícitos: contra posições do Daesh e simultaneamente contra os curdos.
Entretanto, Joe Biden, colocado sob forte pressão dos actuais dirigentes turcos, prestou-se a representar um ignominioso papel e advertiu publicamente os curdos que não teriam o apoio dos EUA para constituírem um Estado independente junto ao corredor sírio-turco (território natural do povo curdo) link. Uma grosseira e boçal reciclagem do acontecido nos acordos de Sézes e Lausanne.
Não há política externa, nem ‘alianças’ que resistam a tão voláteis equilíbrios e a tantos meandros e ziguezagues tácticos (ao sabor do momento). Ignorar – mais uma vez – o maior grupo étnico do Mundo que não possui um Estado é, manifestamente, uma veleidade.
O incompreensível puzzle político-militar que se abate progressivamente todo o Médio Oriente começa a reunir todos os ingredientes para uma devastadora ‘tempestade perfeita’.
Comentários
Porém, não me parece viável que a identidade dos povos se venha a diluir numa futura identidade global sem que antes corra muito sangue. Porque por detrás de cada desejo de independência está um problema económico, isto é, está alguém que exerce domínio sobre outrem aproveitando-se da diferença de músculo.
Sempre assim foi. Sempre assim será.
Quanto ao texto, limitei-me a aprender mais algumas coisas e tive o gosto de saber que Afonso Costa foi um lúcido interveniente na situação referida.
Concordo absolutamente com o comentário.
O rolo compressor da globalização caminha, de facto, para a imposição de um 'governo mundial', emanado directamente do sector financeiro.
Por exemplo, a cidadania será substituída por outro conceito a competitividade e a iniciativa (também cidadã) pelo 'empreendedorismo', etc. ...
Todos estamos a ver o filme.
Mas estamos a falar do longo percurso feito até à entrada para este cinema.
E quando se pretende recordar o histórico do início do séc. XX relativas às conferências de Sévres e de Lausanne é só para salientar que nada de inovador há na metodologia.
Revivemos as mesmas peias, hipocrisias e falsidades ao sabor de interesses momentâneos. E as vítimas podem ser (como é o caso) centenárias ou milenares.