Com a corda na garganta (Crónica)

O cavador, vergado ao peso da enxada e da fé, descansava ao domingo por imposição canónica e dos outros paroquianos. Choravam-lhe os filhos, com fome, e doía-lhe o mutismo da mulher. Vivia em aflição e, enquanto o padre transformava em benta a água vulgar e em hóstias consagradas as rodelas de pão ázimo, ia duvidando da fé.

Não o empolgava o latim, não se condoía do martírio de seu deus e descria da virtude do padre.

No domingo ansiava pela segunda-feira, esperando que um lavrador o chamasse para os trabalhos agrícolas, à espera de oito mil réis e da canada de vinho com que criava forças para, com a côdea de pão e o escasso peguilho, aguentar a jorna e a família.

Já por várias vezes temera ter de vender as cabrinhas que os filhos apascentavam à beira dos caminhos. Sem leite, queijo e cabritos que dali vinham, sem o toucinho que ficava da venda dos lombos e dos presuntos do porco que a mulher criava, como iria alimentar os seis filhos que ainda restavam dos dez que Deus quisera?

No Inverno não havia trabalho e era escassa a comida. Na panela fervia um coirato que acabaria repartido por todos para acompanhar as magras fatias do pão duro que restava da última fornada. O naco de toucinho, que saíra da salgadeira, escoltava o coirato para dar paladar às couves e batatas que ferviam na panela de ferro. Que raio de vida, a dos pobres. Era a vontade de deus que, assim, se cumpria.
Uma tarde, a mocha, a cabra que dava mais leite, pareceu doente. De manhã acharam-na morta, barriga inchada, quem sabe o que comera. O cavador teve de carregar com ela e enterrá-la, nem a pele lhe aproveitou.

Dois dias depois os sinos da aldeia tocaram a sinais. Perguntei quem tinha morrido, foi o Zé da Catrina, menino, devia estar doido, com mulher e seis filhos, fazer uma coisa dessas, não andava bom da cabeça. Prendeu na trave da casa a corda que lhe ficou da cabra e, com ela, fez um laço. Subiu a um banco e meteu-se dentro. Quando voltaram da missa, a mulher e os filhos foram dar com ele, com os olhos muito abertos, a língua de fora e o banco caído.

Ficou assim no dia seguinte, as moscas a poisarem nele, até chegarem as autoridades. Foi o maligno, murmurou-se na aldeia, só podia ser, o Zé era pouco devoto, abandonou deus, entraram nele os espíritos.

O padre recusou fazer o enterro. A Catrina ajoelhou-se a implorar que o acompanhasse mas o sacerdote invocou o direito canónico. O coveiro abriu-lhe a cova longe dos outros mortos, num talhão ainda sem campas e por benzer, talvez para não atormentar os que morreram confortados com todos os sacramentos.

Já lá vão seis décadas, não sei se a terra comeu o Zé da Catrina de forma diferente dos que temeram a deus e cumpriram os mandamentos.

Ponte Europa/ Sorumbático

Comentários

Julio disse…
[Excelente composição]
Esse não foi o primeiro caso naquela aldeia, mas mais um a catalogar no Livro dos Mártires de Deus e do Diabo que Jeová traz debaixo do braço, para no dia do Juízo Final se condenar a si mesmo por ter abençoado a pobreza na boca do seu filho cristo, porque dos tais pobres e miseráveis é o reino de deus! Bem-aventurados os pobres porque no coral angélico terão parte! E por toda a eternidade cantarão odes à fome e miséria que os atormentou na terra do nosso senhor Jesus Cristo salvador do mundo.
LUIS FERNANDES disse…
Muito bem escrito. Parabéns. Quanto ao procedimento da Igreja nem falo.
Abraço.
Luis Fernandes
Excelente crónica, tanto no plano social como no plano literário.

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