O Parecer 57/CNECV/09: alguns indícios

O polémico Parecer do CNECV continua a dar que falar.

Vejamos algumas curiosidades deste parecer, sem colocar em causa o respeito e a importância que o CNECV merecem, independentemente das obras que num determinado momento histórico aí sejam aprovadas.

Como resulta da leitura do dito Parecer, os seus relatores (e naturalmente todos os que o votaram favoravelmente) revelam-se fiéis à crença de que é necessário “reforçar a “intimidade” moral da relação médico doente”. Se bem se entende, é proposta uma concepção ligada ao paternalismo clínico, uma perspectiva que foi abandonada pela ética médica desde os horrores do nazismo, desde os tempos que insígnes professores de Medicina das Universidades alemãs levaram a cabo as mais terríveis experiências com seres humanos.
Trata-se de uma perspectiva ética e filosófica muito conservadora, que em termos jurídicos não tem acolhimento nem na Constituição da República, nem no Direito Internacional.
Pelo contrário, o princípio da autonomia obteve clara consagração na Convenção dos Direitos do Homem e a Biomedicina, na Lei de Bases da Saúde e no Código Penal português.

No Parecer afirma-se: “Em segundo lugar, porque a responsabilidade dos médicos e outros profissionais de saúde, emerge precisamente do sentido de responsabilidade intrínseco à profissão e não, primariamente, de um conjunto de regras destinadas a salvaguardar a autonomia dos doentes.”
Ou seja, este Parecer coloca em lugar subalterno, desdenha, diminui, nega o valor dos direitos dos doentes, em especial do direito à informação e ao consentimento informado. Portugal, se tivesse como espelho a concepção apresentada e defendida neste Parecer, estaria nos antípodas de toda a Europa e em violação das regras a que se obrigou, não só no Conselho da Europa, mas também na Organização Mundial de Saúde e na própria União Europeia.

O corolário da tese expandida no Parecer encontra-se neste parágrafo:
“O que este diploma esquece é que todos os estudos que se têm debruçado sobre esta questão demonstram que, embora os doentes apreciem e desejem que lhes seja dada informação sobre as várias opções diagnosticas e terapêuticas, o doente geralmente deixa a decisão final ao seu médico.”
É pena que esses estudos não sejam citados e é lamentável que se confunda a situação de vulnerabilidade e de desequilíbrio de informação em que o doente se encontra, com um ataque ao princípio da autonomia e com o reconhecimento de direitos já previstos na Constituição, na Lei de Bases da Saúde, no Código Penal e no próprio Código Deontológico da Ordem dos Médicos.
Os termos em que o Parecer é redigido indiciam que os seus relatores não terão em grande conta sequer o Código deontológico da sua ordem profissional.

Não é próprio que seja feita a defesa da desresponsabilização do doente e da sua infantilização. Dou conta ao leitor do Ponte Europa que no próprio texto de um Parecer do CNECV constam as seguintes frases:
“É o Sr. Dr. que me vai operar?”. Quanto ao resto, o sentimento corrente ainda em Portugal é expresso em afirmações como: “Trate-me como se fosse da sua família”, “Faça o que for melhor para mim”, ou “Estou nas suas mãos.”

Curiosamente, era este projecto de lei que impunha a resposta àquela questão: “É o Sr. Dr. que me vai operar?”, já que o artigo 2.º, n.º 6 impunha: “O doente tem o direito de saber qual o médico, ou outros profissionais de saúde, que realizam intervenções ou tratamentos, incluindo os meios complementares de diagnóstico.”

Mas o Parecer vai ainda mais longe, retomando o seu extremo paternalismo, reafirmando que o doente “não está habilitado para tomar decisões.”
Será o entendimento do Parecer que as pessoas em Portugal, ao contrário de Espanha, da França, de todos os países europeus e da grande maioria dos países no mundo industrializado, são ignorantes, enfermas, estúpidas e incapazes de decidir?

Por hoje ficamos apenas pelas questões introdutórias. Numa outra oportunidade poderemos voltar ao detalhe.

Mas não termino sem antes demonstrar que a coerência não é também o forte deste Parecer.
Depois de várias páginas a criticar ferozmente o princípio da autonomia - e com isso 50 anos de evolução na ética médica e direito da saúde - deparamo-nos com uma crítica ao chamado "privilégio terapêutico." Vejamos:
Ao analisar o art. 5.º, o Parecer considera que afinal o projecto não é autonomista radical, é antes paternalista em demasia! Afirma-se relativamente a esse artigo: “enunciada desta forma, não impedirá a prática de um paternalismo absoluto, exercido por vezes com cumplicidade da própria família.”
E por que forma foi enunciado o privilégio terapêutico? Exactamente com as mesmas palavras que no Código penal (art. 157.º, parte final)… E não se argumente que a redacção é paternalista, pois a omissão das informações apenas pode ser realizada em casos excepcionais, se “a informação implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo doente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica.”
Em que ficamos afinal? O projecto visa “minar” a relação médico paciente por ser demasiado autonomista ou é afinal demasiado paternalista?
Por outro lado, será que foi lido o Código Penal antes de se redigir a aprovar este Parecer?

Compreende-se que ele continue a dar que falar e certamente será comentado nas revistas da especialidade durante muitos anos.

Comentários

e-pá! disse…
Caro André Pereira:

O primeiro problema é o elevado número de membros que constituiem o CNECV.
De facto, salvaguardando a competência técnica e a idoneidade dos seus membros, para cuja avaliação me declaro incompetente (não serei o único, havendo outros que o são, mas opinam...), 20 elementos oriundos de 15 entidades diferentes, transforma este Conselho Nacional, num um "albergue espanhol".

Muita gente reunida numa sala proveniente de diversas latitudes, não faz descer sobre os espiritos clarividência ou discernimento.
A representatividade não brota de um inoperacional exagero numérico de representantes.
Também aqui o óptimo é inimigo do bom.

Depois, para muitos grupos profissionais com características técnicas, filosóficas, sociológicas e culturais diversificadas, para os quais os pareceres da CNECV são importantes, esta está inquinada pelo domínio de um poderoso leque de fundamentos religiosos que, em última análise, ditam comportamentos éticos que mais não são do que a reprodução do seus princípios e concepções teológicas sobre a vida.

É fácil transformar uma Comissão de Ética num caldo de cultura onde fervilham os "valores" e os dictames" da civilização judaico-cristã, no seu esplendor e força dominadora.
Todavia, em meu entender, a Ética (diria redundantemente a "boa Ética") só pode ser universalista.

Sendo a CNECV um orgão consultivo, independente, funcionando junto da Presidência do Conselho de Ministros, muitas das intromissões recentemente observadas sobre a nomeação dos seus membros são extemporâneas para não dizer abusivas.
E sendo a Ética um vasto conjunto de atitudes, factos, procedimentos e decisões que são, simultaneamente, bons para o indivíduo e para a sociedade, a atitude do PR sobre a constituição desta Comissão será um acabado exemplo de uma inusitada violência, eticamente reprovável.

Vale a pena regressar aos velhos tempos de grandeza do raciocínio filosófico e recordar o velho dilema ético:

"o que é bom para a leoa, não pode ser bom à gazela.
E, o que é bom à gazela, fatalmente não será bom à leoa..."

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