Ateu, graças a Deus

Há quem por graciosidade ou provocação goste de dizer aos que elegem a consciência como única fonte de valores, que são «ateus, graças a Deus».

E não é que têm razão? Deus é uma explicação por defeito para todas as dúvidas, uma boia para todos os naufrágios, um arrimo para todos os medos – especialmente, para a mãe de todos os medos –, o medo da morte.

Não fora a invenção desse ser imaginário, à semelhança dos homens que o criaram, não haveria necessidade do contraditório. Não há antítese sem tese, nem síntese sem ambas.

Os ateus não têm o direito de perseguir os crentes, tal como a estes não assiste o direito de molestar aqueles. Diferente é o combate de ideias, batalha que cabe aos crentes travar entre crenças ou contra o ateísmo e aos ateus contra as crenças.

É preciso ser destituído do mais leve resquício de humanismo para deixar sem combate a crença nas virgens que aguardam terroristas, os pregadores do ódio e os divulgadores da vontade divina que impõe normas de vestuário, tipos de alimentação e decapitações, por heresia, blasfémia ou apostasia.

A apostasia é um direito inalienável, seja em relação a um partido político, a uma crença religiosa ou a uma doutrina filosófica. Com que direito poderia um ateu perseguir quem, depois de o ter sido, optasse por ir a pé a Fátima, andar de rastos à volta de um ícone, ou intoxicar-se com incenso?

A blasfémia, que permanece no Código Penal português, é um anacronismo que não faz sentido. Um islamita não tolera uma caricatura de Maomé, ouvir um trecho de música ou ver Alá desprezado? Conforme-se, tal como os ateus quando escutam um cardeal a considerar o ateísmo como a maior tragédia da Humanidade.

Idiota, tolice grossa, é animar uma maratona pia, uma peregrinação a Fátima “contra o ateísmo”, a peregrinação de 13 de maio de 2008, chefiada pelo cardeal Saraiva Martins. Tinha esse direito, porque a peregrinação não foi contra os ateus, que são pessoas, foi contra uma ideia – o ateísmo –, mas revela um carácter belicista a lembrar as Cruzadas.

O livre-pensamento e a liberdade de expressão são mais importantes do que as crenças particulares. Ao Estado, cuja neutralidade é uma exigência democrática, cabe apenas defender a livre expressão de todas as crenças, por mais idiotas que sejam, desde vacas sagradas à transubstanciação das hóstias em corpo e sangue de um judeu defunto, sob o efeito de sinais cabalísticos executados por um clérigo ungido e com alvará.

Mais importante do que qualquer crença é a confiança na Humanidade e na capacidade desta para se transformar e melhorar. Nessa tarefa podem ateus e crentes dar-se as mãos.

Ponte Europa / Sorumbático

Comentários

e-pá! disse…
Ontem o chefe da ICAR, (re)baptizado de Francisco, falando na sua sede no Vaticano, emitiu um particular apelo. “…Comemorando seu primeiro Natal como líder da Igreja Católica, o papa Francisco pediu ontem pela união de ateus e crentes de todas as religiões como forma de espalhar a paz ao redor do mundo... link.
Muito embora este apelo mostre alguma ‘abertura’ ao não excomungar liminarmente – como foi regra no passado - os ateus, isto é, encara como viável um convívio entre todos os homens, independentemente de opções religiosas, trata-se de um enviesamento histórico que transborda toda a realidade.

Na verdade, quer os mais próximos (do último século) quer os recentes conflitos (Síria, Rep. Centro-Africana, Egipto, etc.) que afligiram (ou afligem) o Mundo em nada têm a ver com os ateus. Ou foram determinados por circunstâncias económicas ou por motivos religiosos ou, pior, pela conjugação destes.
Se existe coisa em que os ateus não podem ser incluídos é no cultivo de pretensões hegemónicas.
Meter os ateus nesta embrulhada é, portanto, bastante despropositado.

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