Carta aberta a Juan Miró

Meu caro João:

Creio que a ida deliberada a Barcelona, após a subida da colina de Montjuïc, para ver na Fundação com o teu nome a primeira retrospetiva da tua obra, me permite o tratamento que, com três décadas de defunção, já não estás em condições de recusar. E sempre me permites dar um ar de intimidade que valoriza o ego de um representante dos nano-mini-micro-intelectuais.

Devo dizer-te, João, que prefiro Picasso, mas sou sensível à plêiade de geniais catalães onde te englobo com Antoni Tàpies, Salvador Dali e Antonio Saura. Nem só de Picasso vive o espírito.

Foi há muitos anos. Algumas vezes lembraste-me Vincent van Gogh e Paul Cézanne e, outras, julguei que estavas a gozar comigo, mas a tua imaginação seduziu-me sempre. Não tenho a veleidade de ter compreendido sempre a pintura, a escultura e a cerâmica com que seduziste os beatos do surrealismo e do dadaísmo, mas aprendi a gostar de ti.

E não foi para falar de ti, muito menos de mim, que te escrevo. Foi para te dizer que um alto governante cavaquista, acusado de perdoar dívidas fiscais a troco de donativos para o partido, talvez calúnia a quem era governante e cavaquista, nódoas indeléveis de quem virou banqueiro e se habituou a defraudar o BPN, o nome não te diz nada, era o banco do regime onde a fina flor do cavaquismo se repoltreou.

E dirás tu, meu caro João, é assim que em português dizemos Juan, dirás tu – dizia eu – o que tens a ver com isso? Pois, é aí que a tua glória se junta à nossa desgraça. Esse tal banqueiro e um bando de outros safados dissiparam mais de 8.000 milhões de euros, eu sei que não sabes o que é isso do euro, quando, com 90 anos, viraste defunto os quadros só eram transacionados em pesetas, dólares e francos. Mas eu informo-te, é a moeda que Portugal tem cada vez mais em dívida púbica e em entregas de particulares em offshore.

Não é que esse desmiolado banqueiro comprou 85 quadros teus em estranha conivência com o genro de um tal Aznar que era devoto de Franco, de quem deves recordar-te, mas que teve de governar em democracia, sim, dessas que havia em França e Inglaterra.

O genro desse Aznar teve artes de se aproveitar com a venda dos teus quadros, os filhos saem aos pais mas em Portugal e Espanha agora são os genros e, do negócio, o que resta são o acervo de uma magnífica coleção que representa todos os períodos da tua vida de pintor.

Era uma recordação cara que nos ficava de ti, meu caro João, um chamariz para os teus devotos se deslocarem a este país cada vez pior frequentado, uma mostra expressiva do teu talento que uns exóticos detentores do poder querem vender por atacado e a pataco.

Terias vergonha deles. Mentem e olham as telas como quem vê o negócio de molduras e até há quem se fixe no interior dos caixilhos a perscrutar o sorriso de vacas nos prados.

Esta carta já vai longa, João. Ainda bem que continuas morto. Se soubesses a história do BPN e dos teus quadros, morrerias de riso, como nós morremos de vergonha, da dívida e de raiva. Tu que inspiraste André Breton e que Matisse representou em Nova Iorque, acabaste numa coleção de Oliveira e Costa com a conta a ser apresentada a todos nós.

Aceita um abraço enviado deste cemitério da inteligência e da cultura, de um teu amigo.

Comentários

e-pá! disse…
Em boa verdade a questão dos quadros de Miró é [mais] uma exportação de 'valores' que se pretende atabalhoadamente 'disfarçar' sob o manto de 'contabilidades' espúrias.
Existem nestas medidas monetaristas uma linha de consciente e irresponsável de 'continuidade', muito longe de qualquer coerência política, mas muito próxima do incentivo - há algum tempo referido por Passos Coelho - à deserção, i. e., ao 'esvaziamento' patrimonial.
Vivemos num país em que tudo o que possa significar um processo de enriquecimento nacional (e a colecção Miró significa 'isso') é uma maldição para os 'mercados'. Numa situação de 'saque' não existem 'cofres', nem são permitidas 'reservas'. Deve ficar tudo exposto à gula e ao desbarato.
Este Governo imbuído destes 'criativos ímpetos' não tardará em propor a substituição de eleições por leilões. É este o caminho para aonde estamos a ser 'empurrados'.
Agostinho disse…
Os quadros são nossos. Foram pagos pelos portugueses do meio, pelos que pagam impostos. Aqueles que os arrebanharam em trapaças maquievélicas não pagam:são uns impostores.

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