O 10 de Junho

O 10 de Junho é um cadáver que se exuma anualmente para as soturnas comemorações oficiais e o desfile de gatos-pingados.

Os EUA exaltam o 4 de Julho, data da declaração da Independência, e fazem desse dia uma festa nacional. Que melhor razão para celebrar o dia do que o nascimento do país, que promulga uma constituição avançada e declara o direito à felicidade?

A França fez da tomada da Bastilha, em 14 de Julho, o símbolo da liberdade, a festa da Revolução que aboliu as velhas monarquias de direito divino e deu origem às modernas democracias governadas por cidadãos que o voto popular escrutina.

O Estado português escolheu, não a independência, não a glória das descobertas, não a liberdade, mas o óbito de um poeta, singular e grande, é certo, mas a morte, nem sequer o nascimento cuja data e local ignora.

Os EUA e a França festejam a liberdade e o povo exulta, Portugal evoca a morte e os portugueses deprimem-se. O dia 10 de Junho era na ditadura o «Dia de Camões, de Portugal e da Raça». Era um dia de nojo, na dupla acepção, com os carrascos a distribuir veneras pelas viúvas, pais e irmãos dos militares mortos na guerra colonial.

Hoje, em democracia, o dia 10 de Junho apenas perdeu a Raça. É o Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas. E permanecem as homenagens aos mortos adiados, embrulhados numa venera no palco das vaidades.

Portugal tem uma Revolução para comemorar, um dia que fez a síntese do melhor que herdámos do liberalismo e do 5 de Outubro, uma madrugada que emocionou o Mundo e libertou Portugal da mais longa ditadura do Século XX – o 25 de Abril.

Mas a mórbida evocação dos defuntos é um traço inapagável da nossa identidade.

Portugal prefere o velório à festa, a véspera da perda da independência à alvorada da libertação, a continuidade das cerimónias da ditadura à aurora de todas as liberdades, à festa do povo e à grandeza épica de Abril.

Comentários

Anónimo disse…
A escolha da data da morte do grande poeta para assinalar no calendário das festas o Dia de Portugal traduz a essência sebastiânica de um povo que se perdeu nas grandezas e nas misérias do Império, e, que, a partir do seu apogeu, acabou por chegar sempre atrasado à modernidade.
Sá de Miranda anunciou-nos esse fatalismo!
Anónimo disse…
Muito bem Carlos. Excelente escrito sobre as comemorações do 10 de junho. Realmente só em Portugal é que se comemora o dia do País numa data que nada diz a ninguém a não ser aos tacanhos da direita. Amanhã lá seremos inundados por um chorrilho de nacionalistas que organizam almoçaradas e outros convívios que não raras vezes terminam na perseguição de indivíduos de raça negra para satisfazerem a sua gula repressiva, autoritária e fascista. Mas porque hoje se relembra uma morte eu gostaria de relembrar um outro morto. Alcino Monteiro um dos que não resistiu à fúria dessa onda fascista que começa novamente a tentar reprimir Portugal. O nosso PR Cavaco Silva dá também uma ajuda à festa (ou não gostasse ele dessas coisas) e condecora mais 37 personalidades portuguesas. Vejam a lista e coloquem-lhes conotações.
e-pá! disse…
Festejamos a morte, por sermos vitimas de um atavismo ancestral.
A vida não é, neste País, nem liberdade, nem independência, nem glória. É o saudosismo prenhe de míticas epopeias.
Por isso, os nossos festejos, não decorrem sob a alegria das "chansons de canaille", do "music-hall", ou das "hit parades", mas na pungência do fado.

Valha-nos, aos menos, os "santos populares" que se aproximam com
todo o seu esplendor pagão (as festas do solstício do Verão).
Aí, de algum modo, libertamo-nos e encontramos a embriaguês do sorriso e da alegria...(quando não a "outra"!)
Anónimo disse…
Das comemorações do 10 de Junho, gostei da recepção a Sócrates, em Setúbal, foi só um aviso, para a próxima é para correr...

Cá se fazem, cá se pagam.
Miguel Carvalho disse…
E o 24 de Agosto?
Nunca percebi porque nem sequer é feriado
Anónimo disse…
o 25 de Novembro é que devia ser feriado em substituição do 10 de Junho, não vamos perder um feriadinho porque o 25 de abril já é feriado. De resto de acordo com tudo ;)
Anónimo disse…
Não faz qualquer sentido o festejo de 10 de Junho...

De facto, valha-nos as festas populares, com toda a sua conotação, já bem diferentes de todo o típico espírito português..

Diogo.

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