As eleições e o futebol
A proibição de jogos de futebol, em dias de eleições, seria uma medida injusta e decerto contraproducente. A cidadania não se defende por decreto, nem se impõe, por coação, o cumprimento das obrigações cívicas. Por que motivo, aliás, se impediria uma atividade desportiva e se excluiria a missa, a praia ou qualquer outro espetáculo?
Para quem não tem consciência cívica e se alheia da ‘res publica’, não é o futebol que o afasta das urnas, e é duvidoso que o voto obrigatório, diminuindo o nível de abstenções, seja a forma mais adequada à pedagogia da cidadania. Não é levando os eleitores presos pela arreata que se promove a consciência cívica.
É evidente que, no dia das próximas eleições autárquicas, a marcação de um jogo entre duas grandes equipas de futebol, das duas maiores cidades, com numerosos adeptos que vibram apaixonadamente pelos seus clubes, não facilita o cumprimento das obrigações cívicas de quem empreende uma longa viagem.
Há, para os adeptos de uma das equipas, muitas centenas de quilómetros a separá-los da cidade onde o jogo se realiza e onde não querem faltar com o seu apoio. Cada um sabe o que lhe dá mais prazer e não é de censurar quem troque a obrigação pela devoção.
Não se esperando que a Liga de Futebol Profissional fosse propriamente uma instituição preocupada com a intervenção cívica e o exercício democrático eleitoral, é de crer que a agilização do ato de votar é necessária, não apenas para os amantes de futebol, mas para todos o que são obrigados a ausentar-se do seu domicílio em dias de eleições.
Se não me trai a memória, a marcação de um jogo amigável entre o SCP e o Benfica, no tempo da ditadura, em Lisboa, sabotou uma manifestação dos empregados de escritório, antecipadamente marcada para a mesma hora.
Eis uma boa razão para ser permitida uma forma mais expedita para o exercício do voto. O voto antecipado ou outras soluções eventualmente possíveis, desde que fiáveis e com garantia de secretismo, são desejáveis para combater a abstenção. Assim fosse confiável o voto dos emigrantes nas eleições legislativas.
Confiar a defesa da democracia à Liga de Futebol Profissional é como esperar a isenção partidária da direção do Automóvel Clube de Portugal.
Ponte Europa / Sorumbático
Comentários
Nos dias de hoje existe um calendário futebolístico - e só aí - cuidadosamente desenhado.
Os fins-de-semana estão tradicionalmente ocupados pelas provas nacionais e os restantes dias da semana estão a ser cirurgicamente distribuídos pelas disputas internacionais.
Esta ocupação poderia ser 'natural' já que na alta competição esta modalidade é privilégio de profissionais, mas não consegue esconder o desejo de colonizar tudo.
O espaço informativo está – na comunicação social - completamente subordinado a esta estratégia. E o rebate desta situação ‘envolvente’ mostra algo de pérfido. Sequencialmente, cada jogo de futebol é objeto (vítima) de um tratamento de polé: debates antecipados sobre as previsões da disputa; durante o encontro é o relato circunstanciado de cada toque, intenção ou simulação; no final as ‘flash enterview’ e as ‘obrigatórias’ declarações dos ‘místers’; nos espaços televisivos da noite o debate prossegue de modo transversal e açambarcador; e, finalmente, no dia seguinte há ainda a ressaca, por exemplo, com programas como ‘o Dia Seguinte’, Zona Mista, Play Off, etc. Um autêntico cerco.
Praticamente não resta tempo para outros focos de interesse. Os meios de vária ordem investidos nesta deriva absorvente e ocupacional tornam o velho slogan do fascismo sobre ‘os três F’s’ (Fado, Fátima e Futebol) uma brincadeira de crianças. Uma análise estatística cuidada destes programas desportivos revelaria, no seu esplendor, uma estratégia de colonização social, alienante e demolidora. As questões políticas, económicas, sociais e culturais foram corridas do espaço informativo e vão perdendo relevância.
A marcação de jogos para os dias dos atos eleitorais não foge a esta (nova?)realidade que paulatinamente se vai instalando.
Penso que a solução não é proibir, não é colocar o dia de eleições de quarentena, primeiro por atentar contra a liberdade individual dos cidadãos e depois porque essa tomada de posição alimentaria, certamente, atitudes reativas, de revanche.
Mas à margem de ‘soluções expeditas’ há indícios bastantes para entender que a participação cívica está a ser irremediavelmente ‘agrilhoada’.
Quais serão as consequências futuras?
Quase todas as propostas sugerem uma 'desburocratização' do ato de votar retirando, por exemplo, o carácter soturno da urna.
Ficam por esclarecer questões de segurança dos sistemas (resistência às fraudes e controlo das contagens) e, paralelamente, problemas de proteção (capacidade de garantir o sigilo do voto).
O poder político não deverá alinhar em processos mais expeditos. Um 'simplex' no processo eleitoral poderia levar à disseminação de mecanismos de democracia direta (onde pontificariam os referendos).
Ora, os políticos estão 'escaldados' com os processos referendários...
Parece-me uma solução exequível.