A Alemanha, a Ucrânia e a Lei de Murphy

Há circunstâncias em que tudo o que pode correr mal, corre efetivamente mal e da pior maneira. A Ucrânia, com tanta população, é o exemplo ideal para ilustrar a referida lei.

No espaço de um século, que se cumprirá no próximo dia 28 de julho, a Alemanha terá estado na origem de três guerras perdidas que, de algum modo, começou. É verdade que a história é escrita pelos vencedores, e que a Alemanha não perde uma guerra dentro do seu espaço vital, mas soçobra sempre que extravasa esse maldito espaço.

Não sei se foi o ensaio jugoslavo que deu à Sr.ª Merkel o entusiasmo com que se deixou enredar nos assuntos internos da Ucrânia, arrastando consigo, para a desonra e tragédia, a União Europeia, que arrasta quando lhe convém e despreza quando a onera. Em Kiev, a população excitou-se, pôs em fuga o presidente pró-russo e inventou um pró-europeu; a Crimeia, habitada por 58,3% de russos, substituiu as forças ucranianas por outras, pró-russas, enquanto 24,3% da população (ucraniana) teme o vigor da entrada russa.

A Alemanha estava disposta a lutar na Crimeia até ao último ucraniano, enquanto Durão Barroso fazia umas ameaças, como porta-voz, e o Papa, a partir do Vaticano, convidava à oração. Esqueceram que em 5 de maio de 1992 a Crimeia proclamou a independência e, mais tarde, concordou em permanecer ligada à Ucrânia, como República autónoma.

A  população tártara é muito minoritária, depois da bárbara deportação a que foi sujeita, em 1944, e dizimada pela fome. Em suma, numa região muito sofrida, etnicamente mal cerzida à Ucrânia, num espaço que pertenceu à República Soviética da Rússia e que, em 1954, Nikita Khrushchev integrou administrativamente para celebrar o 300.º aniversário da Unificação da Rússia e da Ucrânia, é natural que forças centrífugas o afastassem para a Rússia. Esta, por sua vez, tem ali o porto que lhe abre caminho para o Mediterrâneo, o único que não gela, e o abrigo da sua frota do Mar Negro, agora que lhe falta a força aglutinadora da fracassada e outrora poderosa União Soviética.

A União Europeia, satélite dos EUA, repetiu o golpe da Geórgia, uma derrota da Nato. A Crimeia ameaça ser uma derrota ainda maior, para evitar uma tragédia. A Rússia não esquece a qualidade de grande potência que, debilitada, teria o assédio das Repúblicas islâmicas surgidas da derrocada do império soviético e incapaz de as conter.

A guerra fria conseguiu o equilíbrio do terror, com a China a preferir os EUA à Rússia. A Europa, que devia tentar atrair a Rússia para o mesmo espaço civilizacional onde se encontra, hostiliza-a  e empurra-a para uma aliança sino-russa, que parece desenhar-se, a caminho do Pacífico. No horizonte paira uma aliança nipónico-americana, perante a insignificância europeia que não consegue deter uma política externa comum, uma força militar convincente ou uma estratégia de paz credível.

Sem esquecer os biltres que têm governado a Ucrânia e o desespero de gente reduzida à miséria, resta um país falido, que exultou em Kiev, a carpir a sua sorte em Sebastopol e por toda a Crimeia, abandonado, humilhado, esfomeado e a tiritar de frio, com o gás russo a preços do mercado.

Comentários

e-pá! disse…
O que se passa na Ucrânia (incluindo a Crimeia) parece obedecer a um calendário há muito concertado (falta saber onde).
Depois das movimentações ainda em curso (políticas, militares, etc.) segue-se a via diplomática, que tudo tentará resolver (nomeadamente as consequências económicas associadas) sem nada explicar (no segredo dos deuses).

Mas o 'ruído' de fundo global não transmitindo certezas sugere muita coisa.
Assim, o maior risco que os ucranianos correm é a fragmentação ( cuja integridade territorial 'todos' os intervenientes apressadamente anunciam querer preservar) é, também, o sinal claro de que está em curso a desintegração nacional (política, económica e social).
Este o preço da 'batalha de Kiev', onde russos, UE e EUA estiveram sempre presentes e condicionaram um desfecho que não preservou qualquer tipo 'coesão popular' (capaz de integrar os povos que habitam a Ucrânia).
Nos últimos dias quentes desta crise os 'novos homens de Kiev' não foram capazes de se fazerem ouvir ou mantêm-se preventivamente em silêncio. O que tem um enorme significado.
Na realidade, o 'muro de Berlim' não caiu estrondosamente em 1989. Começou a ser alagado por essa data (ou até antes) mas ficaram para trás - aqui e acolá - algumas cercas muradas que não têm alicerces (próprios) para resistir às intempéries (essencialmente políticas e económicas), agora com dimensão 'global'...
Agostinho disse…
"Ora vamos lá sentar-nos à mesa, diz Putin a Merckel. Vamos fazer tudo democraticamente, não é Obama, tudo limpinho. Faz-se um referendo na Crimeia. É justo que a população decida o seu destino. Quanto à Ucrânia... não é problema meu, eles que resolvam como quiserem. Podem até ficar a tiritar no inverno, a menos que a UE nos pague o gás diretamente. Sempre é melhor do que darem o dinheiro àquela malta que por lá anda azougada."

Coitados dos ucranianos bem podem ficar à espera da salvação da UE. Deitados para não gastar energia.
e-pá! disse…
A Crimeia não chega. Aí o referendo é uma coisa fácil mas insuficiente.
A Rússia quer mais. Quer 'assegurar' a entrada terrestre para a península da Crimeia através do istmo de Perekop. O que significa controlar também a parte oriental da Ucrânia.
O actual momento parece ter ultrapassado as 'soluções democráticas' (quer directas ou representativas). O 'esquartejamento' da Ucrânia tornou-se inevitável após a 'insurreição de Kiev'.
Resta promover uma 'nova conferência de Yalta' (por sinal na Crimeia) em que Churchill, Stalin e Roosevelt sejam substituídos por Merkel, Putin e Obama...
E tudo o resto é paisagem.
e-pá! disse…
Existe um pormenor interessante à volta da situação relativa às sanções económicas que tem sido cuidadosamente ocultada.
A China manifestou “grande concordância de pontos de vista (em relação à actuação da Rússia) sobre a situação” (na Crimeia). link.
Isto é, o 'mercado oriental' iniciou um (o seu) 'reajustamento'. E todos sabemos qual é a sua dimensão.

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