Erdogan: O imã (ou o 'irmão') que deseja ser califa...

Recep Tayyip Erdogan, actual presidente turco, tentando argumentar sobre a necessidade de impor no seu País um regime presidencialista, onde teria largos poderes executivos, teve a ousadia de declarar link:
"Há exemplos no mundo. Também há exemplos do passado. Se olharmos para a Alemanha de Hitler podemos ver".
Incrível, ou mau demais, para ser verdade.

Na mesma conferência de imprensa tentou emendar a mão com a seguinte declaração: “"Há bons e maus exemplos de sistemas presidenciais e o importante é haver um equilíbrio. A Alemanha nazi, na ausência de enquadramento institucional, foi obviamente um dos piores exemplos da História".
Como se o problema relativo à Alemanha nazi fosse a falta de enquadramento institucional. Na realidade, Hitler utilizou o sistema democrático para se fazer eleger chanceler em 1933 e depois não precisou de qualquer outra formalidade – apenas 1 ano de exercício do poder - para se afirmar como führer, isto é, o único ‘líder condutor’, absorvendo os poderes presidenciais, legislativos e executivos e, deste modo, encerrou abruptamente as questões institucionais que parecem, agora, ‘incomodar’ Erdogan.

Erdogan é um político turco cujo percurso político se cruza amiudadas vezes com as posições ideológicas e religiosas da ‘Irmandade Muçulmana’ link e com o Hamas link.

Foi dos poucos líderes – mesmo entre os regimes muçulmanos da região - que saiu em defesa de Moahmed  Morsi, ex-presidente egípcio, oriundo das fileiras da ‘Irmandade Muçulmana’. Embora eleito pelo voto popular Morsi apressou-se a alterar o enquadramento institucional (…que Erdogan parece venerar) empurrando os egípcios para uma deriva teocrática (à volta da imposição da sharia), num indisfarçável ‘golpe constitucional’, e fez o País regredir a uma ditadura militar  (dispensando  o incómodo Mubarak).

Ergodan fez estas tenebrosas declarações sobre a pretensão presidencialista regressado de uma visita à Arabia Saudita. Este facto poderá não ser secundário.
Não é a primeira vez que se insinua que Erdogan quer mudar a constituição para se tornar ele próprio um emir link.
Ou seja está a tentar um primeiro passo para consolidar um novo califado. Este ‘projecto’ aclara as posições dúbias de Erdogan face ao Daesh. Na verdade, o novo emir turco poderá ser um concorrente  (substituto) do auto-proclamado califa Al-Baghdadi.
A atitude turca quando do combate em Kobani (Síria) link foi bastante reveladora das intenções de Erdogan.

O ‘projecto turco’ (ou 'otomano'?) será, portanto, mais envolvente. Tratar-se-ia de ultrapassar as divisões entre xiitas e sunitas para se afirmar como simplesmente ‘islamita’ e a partir desse trampolim dominar a região do Médio Oriente onde a política ocidental (dos EUA e da UE) tem sido errática, inconsistente, perigosa e pouco esclarecida.

Este poderá ser o grande problema onde o Ocidente se afunda perante um Médio Oriente em polvorosa e que a NATO tem cada vez mais dificuldades em esconder e não consegue esclarecer. O que se torna totalmente inverosímil é apresentar o pretenso 'emir de Istambul' como um 'islamita moderado'.
Os 'planos' do Ocidente para o Médio Oriente são necessariamente outros. Seria bom que fossem explicitados.

Comentários

Jaime Santos disse…
Discordo da análise. Os sunitas podem ter intenções hegemónicas nas diferentes áreas de influência de cada regime, mas não vejo nada as diferentes facções xiitas a fazerem-lhes a vontade. Há claramente uma guerra civil dentro do Islão e curiosamente o Ocidente tomou partido da facção sunita, a mais reaccionária. Aliás, desde a revolução islâmica em Teerão que os EUA têm sucessivamente apoiado regimes sunitas que se revelam, um cada vez pior que o outro: Iraque de Saddam, Paquistão, Afeganistão, incluindo o apoio aos talibãs nos anos 90, juntamente com a França, e claro as sempre presentes monarquias do Golfo. Juan Cole, em artigo recente na 'The Nation' apelava a que a França não seguisse a linha dos sauditas... Finalmente, como Pacheco Pereira bem notou, o Ocidente abandonou os povos muçulmanos mais seculares, a saber, os curdos e os palestinianos (ambos sunitas, por sinal). Negócios, a quanto obrigam... O Ocidente claramente coloca os negócios e as alianças militares com os regimes sunitas acima da segurança das suas próprias populações (não esquecer as relações dos diversos regimes sunitas com o Daesh)...
e-pá! disse…
Claro que existe uma clara hegemonia dos muçulmanos sunitas na conturbada situação que se vive no Médio Oriente.
O que se passa na Síria tem muito a ver com a guerra religiosa xiita/sunita. Existe uma pesada herança histórica de âmbito político-religioso e também de permanente afrontamento entre estas duas facções que passa justamente por Damasco. É aí que, nos primórdios do Islão, assenta arraiais o califado.
Mas será de supor que os muçulmanos reconheçam que não têm qualquer possibilidade de (re)criar (ou restaurar) um califado se persistir essa divisão embora se saiba que os sunitas são a larga maioria dos muçulmanos (80% ?).
De facto, o califado otomano que só se desmorona com o fim da I Guerra Mundial é de inspiração sunita.
Todavia, a relação de forças existente hoje no Médio Oriente - apesar do poderio e dos apoios da Arábia Saudita - não é a mesma da do início do século XIX e o Ocidente tem deixado cair o seu apoio a importantes grupos sunitas como o Hamas e a Irmandade Muçulmana (muito por causa do conflito israelo-palestino).
Estes (Irmandade e Hamas) são os principais grupos influenciadores (político-religiosos) de Erdogan que viverá na desesperada intenção de reconstruir o califado otomano, sedeado em Istambul, apesar da volatilidade dos apoios islâmicos, mas encostado ao poderio da NATO (sendo um dos maiores exércitos dessa organização). O que será uma outra e incompreensível 'história'...
Jaime Santos disse…
É justamente devido a esse rendilhado de lutas fratricidas que eu não auguro nenhum sucesso às intenções turcas ou mesmo dos sauditas. E julgo que os EUA perceberam (ou pelo menos Obama percebeu) que o Irão é melhor como aliado do que como Inimigo na região. Claro, o paroxismo da situação pode incendiar a região com repercussões na Europa, seja ou nível do aumento do número dos refugiados, seja mesmo devido a novos ataques da Al Qaeda, Daesh ou seus sucedâneos. Mas daí à formação de um Califado? Não, não é credível. O que o Ocidente e a Rússia devem perceber é que é preciso lidar primeiro com o Daesh e só depois com Assad. Quanto a Erdogan, é uma carta do baralho que é preciso manter sob controle, explicando-lhe, por exemplo, que a NATO não está obrigada a defendê-lo se for ele a causar uma guerra com a Rússia... Ou mesmo ameaçando-o que o Ocidente pode apoiar as pretensões curdas se ele não se comportar direito...
e-pá! disse…
Mais uma vez de acordo com o comentário.
O derrube do avião militar russo na fronteira sírio-turca foi um indício de que o Governo de Ankara aposta num conflito entre a NATO e a Rússia para levar água ao seu moinho. Resta saber qual é o seu moinho... mas, no fundo, estará sempre presente a questão do califado (uma questão fulcral no exercício do poder político islâmico). Claro que esta pretensão não tem qualquer viabilidade face aos equilíbrios estratégicos existentes na região e no Mundo. Mas tal evidência poderá não ser aceite liminarmente pelas fações muçulmanas em confronto ou, então, levar à proposição de aplanar (artificialmente) divergências para tentar chegar lá.

Aliás, a intensificação da intervenção russa na Síria não tem sido cabalmente valorizada mas, de facto, alterou as circunstâncias objetivas, e provavelmente o curso, da guerra civil síria.
Estas alterações terão inevitavelmente consequências diretas sobre o futuro do Daesh, i. e., destroçando este pretenso califado, mas não eliminado a possibilidade de 'nascerem' outras tentativas, com outro contexto.

Mensagens populares deste blogue

Divagando sobre barretes e 'experiências'…

26 de agosto – efemérides