A eutanásia, o direito à vida e a Igreja católica

A eutanásia não é uma decisão que possa ou deva ser tomada de ânimo leve. A posição que defendo, engloba as minhas opções filosóficas e, sobretudo, lições da vida.

Em 2011, tive uma experiência pessoal que é motivo de reflexão e se mantém presente quando escrevo sobre a eutanásia.

Aos 68 anos era um doente sem currículo e, em dois meses, passei a ter largo cadastro. Fui operado à vesícula biliar, intervenção que previa 48 horas de internamento, e acabei no Serviço de Reanimação, 52 dias, em coma profundo induzido, com uma septicémia provocada por uma bactéria ‘pseudomona multirresistente’.

Podia juntar recordações da guerra colonial e dos seus mutilados, de viúvos e órfãos que acompanharam o sofrimento sem esperança de quem mais estimavam, para emitir a opinião que perfilho em defesa da morte assistida, desde que existam precauções e se verifiquem alguns presupostos:

1 – A doença tem de ser considerada incurável, segundo o estado da arte médica;
2 – O sofrimento tem de ser declarado clinicamente;
3 – A decisão tem de ser do próprio ou de quem, na impossibilidade de este manifestar a sua vontade, tenha legitimidade para o substituir.

Dito isto, só quem desconheça casos de profundo, inútil e indesejado sofrimento pode, por preconceitos religiosos, opor-se à vontade de quem decida antecipar a morte. Aliás, não reconheço legitimidade a quem se oponha a uma medida voluntária e exclusiva da liberdade individual.

Deus não tem voto parlamentar. A liberdade individual não é referendável e os crentes não têm o direito de impor o martírio que as convicções pias exigem a si próprios.

A vida é um direito inalienável, mas não pode transformar-se em condenação inexorável.

Comentários

Jaime Santos disse…
Estou de acordo que uma questão de liberdade individual deve ser deixada à câmara que pode decidir sobre matérias de tal natureza, a AR. Mas creio que nenhum dos Partidos aí representados se apresentou a eleições incluindo tal questão no seu manifesto. Por esse motivo, considero que embora esta seja uma altura tão boa como qualquer outra para iniciar tal debate, os ditos Partidos devem esperar até depois das próximas eleições antes de apresentarem iniciativas legislativas sobre esta matéria.
Manuel Galvão disse…
Por muito que me digam continuo a julgar que a única solução válida é a dos kits de suicídio.
Quando a coisa começa a dar para o torto (ou mesmo antes) a pessoa compra o kit, em segredo, e esconde-o em lugar seguro e de fácil acesso.
Quando for necessário está ali à mão...
Para quê meter terceira pessoa ao barulho, que pode muito bem não ter coragem para nos ajudar ou, tendo, vir a sofrer represálias ou ser acusada de cometer homicídio?
Jaime Santos:
Na minha opinião nenhum partido tem o direito de se comprometer com uma matéria que é do foro íntimo de cada deputado. Como a lei não obriga quem quer que seja a aceitar a eutanásia, trata-se apenas de ser concedida a quem a solicite. Verá que deputados de todos os partidos se dividirão nesta matéria, o que é aceitável.

E, repito, direitos individuais não devem ser referendados.
e-pá! disse…
A eutanásia é um novo tema dito 'fraturante' que está a ser introduzido na discussão pública. Se por um lado é bom e dinâmico esta abertura a novos temas talvez fosse prudente proporcionar debate sério e alargado. Certo que como dizia Franklim Roosevelt "é melhor morrer de pé do que viver de joelhos" tenho algumas dúvidas e dificuldades sobre o que é declarar que um homem, ou uma mulher, está numa situação "incurável".

São previsíveis várias reações a esta proposta. Primeiro, a da ICAR à volta de generalidades e dogmas sobre o conceito da vida (esquecendo a longa lista de 'eutanásias bélicas' que alimentou ao longo de séculos). Depois, a Direita que pretenderá contornar o problema com o desenvolvimento de cuidados paliativos (um pouco no estilo da sua posição sobre o aborto que simulou contrariar com o desenvolvimento de medidas de planeamento familiar e controlo da natalidade).
Não é um tema fácil porque para além dos princípios (humanos) existem concomitantemente nebulosas questões técnicas em suspenso como as relacionadas com o sofrimento (e a dor).

As questões relativas à dignidade humana são fundamentais - e a eutanásia imiscui-se neste volátil terreno - embora todos tenhamos receio e angustia em desbundar livremente esta discussão.
A nossa civilização (antiga ou arcaica) cultivou altivamente a eternidade e não é de um dia para o outro que a substituímos pela transitoriedade.
Falta 'partir muita pedra?...
Jaime Santos disse…
Carlos, um Partido pode tomar uma iniciativa legislativa (é o que o BE parece querer fazer) e ainda assim dar liberdade de votos aos seus deputados. Mas, se o faz, deveria assumi-lo perante os seus eleitores, que representa e de onde deriva a sua legitimidade. Dito isto, eu também sou favorável à legalização do suicídio assistido, embora partilhe das dúvidas de e-pá. A assistência ao suicídio de um indivíduo saudável deve continuar a ser e bem, punida por Lei, mas se a Lei não pune o suicida (no caso de este falhar o ato), por que deveria por essa via da criminalização da ajuda de terceiros, impedi-lo de pôr termo à vida numa situação de doença incurável e de dor atroz, porventura a única em que o suicídio é justificável, quando ele não é capaz de cometer esse ato sem ajuda?
Jaime Santos:

Não sou jurista mas penso que é punida a tentativa de suicídio bem como os danos causados pelo próprio (v.g. auto-mutilação).

Estou consciente dos perigos de uma liberalização sem regras mas penso que o direito de cada um a decidir quando não quer/pode suportar a vida deve ter acolhimento legal.
Jaime Santos disse…
Carlos, eu também não sou jurista, mas creio que podemos nesta matéria confiar na opinião de Vital Moreira: http://causa-nossa.blogspot.pt/2016/02/deixemos-constituicao-em-paz.html. Mantendo a minha opinião de que não se devem referendar direitos fundamentais (algo que já foi efetivamente feito no caso da IVG), creio que aquilo que Vital Moreira diz abre a porta a que se faça um referendo nesta matéria. Preferiria que não se optasse por essa via (e que se esperasse por uma nova legislatura), mas parece-me que é a única forma de legitimar uma mudança da lei antes de novas eleições legislativas...

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