A blasfémia, a catarse e o Código Penal
A blasfémia está para os incréus como a confissão para os beatos. A primeira é pública e atinge primores de imaginação em Espanha e, particularmente, no sul de Itália. Quem melhor blasfema, na cultura judaico-cristã, são os povos que mais oprimidos foram pelo clero e pelos constrangimentos sociais.
A confissão é uma arma ao serviço da Igreja, a blasfémia é um desabafo individual. Na primeira, as pessoas põem-se de joelhos e falam baixo para uma só pessoa – o padre; na segunda, fala-se alto, para quem quiser ouvir, através de vocabulário indecoroso nos salões mas frequente nas feiras, nas tabernas e no Porto.
Blasfemar é um ato catártico que alivia as tensões e conduz ao bem-estar enquanto a confissão é uma forma de humilhação que obriga à penitência e mantém o hábito de andar de rastos ou de joelhos.
Dizer, como Mark Twain, que «o Antigo Testamento mostra Deus como sendo injusto, mesquinho, cruel e vingativo, punindo crianças inocentes pelos erros de seus pais e pessoas pelos pecados de governantes, vingando-se em ovelhas e bezerros inofensivos, como punição por ofensas insignificantes cometidas pelos proprietários», é a blasfémia erudita. Prefiro a forma popular dos espanhóis a dirigirem-se à hóstia ou a nomearem a Virgem mas nada é tão estimulante como ouvir um calabrês, com a bela sonoridade da língua italiana, a classificar Deus.
Para o espírito obtuso dos clérigos é uma blasfémia duvidar do pobre Moisés que subiu a pé o Monte Sinai, para receber de Deus as tábuas com os Mandamentos, ou do arcanjo Gabriel que voou até à Palestina para dizer a uma pobre judia que estava grávida. Esta gente deve fumar erva suspeita ou tem azar na escolha dos cogumelos.
O que surpreende é o facto de os códigos penais de países civilizados acolherem como crimes atos tão estimulantes como a blasfémia e de os punirem com penas de multa ou de prisão. Eu admito que Deus não goste do que eu penso dele, já que me é indiferente o que ele pensa de mim. Irracional é poder ser-se punido por insultar quem não existe. E pior, sem o ofendido, se queixar!
O crime de blasfémia é uma sobrevivência medieval que ainda contamina os códigos penais de alguns países republicanos, laicos e democráticos.
Comentários
“Aquele que faltar ao respeito à religião do reino, católica, apostólica, romana, será condenado…[em prisão e multa]…em cada um dos casos seguintes:
1- Injuriando a mesma religião publicamente em qualquer dogma, acto ou objecto do seu culto, por (…);
2- Tentando pelos mesmos meios propagar doutrinas contrárias aos dogmas católicos definidos pela Igreja;
3- Tentando por qualquer meio fazer prosélitos ou conversões para religião diferente(…);
4- Celebrando actos públicos de um culto que não seja o da mesma religião católica.”
Embora a palavra “blasfémia” não figurasse na epígrafe do artigo, era usada no seu §2º,
onde se cominava pena menos severa para o caso em que “as palavras injuriosas ou blasfémias” fossem proferidas “sem intenção de escarnecer ou ultrajar a religião do reino”.
Também era punida a apostasia; o art. 135 preceituava:
“Todo o português que, professando a religião do reino, faltar ao respeito à mesma religião, apostatando, ou renunciando a ela publicamente, será condenado na pena fixa de suspensão dos direitos políticos por vinte anos.”
De notar que, como resulta dos textos citados, só era protegida a “religião do reino”.
Claro está que estas normas medievais foram varridas do nosso ordenamento jurídico pela República, através do Decreto de 20 de Abril de 1911, que as revogou e preceituou que “a religião católica apostólica romana deixa de ser a religião do Estado”.