Acordo ortográfico

Abstive-me, até agora, de tomar posição pública sobre o novo acordo ortográfico que jazia na gaveta das indecisões, zurzido pelos habituais opinantes do «porque não» e por alguns destacados intelectuais.

Manuel Alegre, Pacheco Pereira e Vasco Graça Moura são, no campo da cultura e da produção literária, figuras de destaque. Do primeiro estou próximo no campo político, ao último reconheço-lhe independência de espírito e a todos grande qualidade literária. São três intelectuais e grandes vultos da cultura portuguesa.

Dito isto, não lhes reconheço mérito político para se oporem ao que, na minha modesta opinião, é uma decisão que peca por tardia. Parecem-me figuras do passado à espera de um frasco de formol para serem exibidas numa pharmácia que ainda faça manipulados.

Qualquer dos três leu obras do padre António Vieira, quiçá o mais ilustra paladino do idioma português, referência de todos os falantes da língua comum. A idade e o currículo académico obrigaram-nos, a eles e a mim, a ler Fernão Lopes, Gil Vicente e até o recente Eça de Queirós com uma ortografia diferente da actual.

Pessoalmente, ensinei centenas de alunos a escrever, com acento grave, os advérbios de modo derivados de adjectivos esdrúxulos ou proparoxítonos. A partir de certo momento, já não sei quando, sumiram-se tais acentos, por decisão legal. E então?

Actualmente corríamos o risco de que os países de língua oficial portuguesa aderissem à grafia brasileira. Era uma questão de bom-senso face ao número de falantes e, o que não é despiciendo, ao potencial económico do maior país da América latina.

Se seguíssemos os doutos iluminados que percebem muito de português e se comportam politicamente como colonialistas o futuro do português acabaria como reserva ecológica de um curioso dialecto cada vez mais distante de uma língua viva chamada brasileiro.

Ainda bem que os políticos, mais sensatos do que os intelectuais e os subscritores de todos os manifestos que lhe enviem pela Internet, decidiram de forma arrasadora em sentido contrário.

Camões, Bernardes, Vieira, Frei Luís de Sousa e Aquilino não se revoltam e Saramago teve a lucidez de perscrutar o futuro, talvez porque escreveu um magnífico Ensaio sobre a Cegueira.

Comentários

e-pá! disse…
Caro CE:

O acordo ortográfico é, no meu entender, uma questão diplomática, resolvida.

Um tratado de sobrevivência da Lingua Portuguesa. Que passou por todos os trâmites porque passam os acordos negociados.
Neste, ou para este, não havia qualquer compromisso de referendo.
O que está feito, feito está.

Depois, embora com um património literário invejável, no futuro seremos menos de 10 milhões a escrever no seio de mais de 500 milhões?
Num Mundo holístico outras pretensões é quase o suicídio linguístico.

A representatividade democrática a "atacar" as letras...coisa que os intelectuais não consideraram idónea.

O meu receio assenta na convicção que não conseguirei mudar a escrita e acabarei os dias a cometer uma enxurrada de erros.
Mas não me ponham, nesta altura da vida, a escrever ditados...

Façam o acordo, mas poupem-me... que vou tentar passar despercebido!
andrepereira disse…
Subscrevo as opiniões dos dois distintos cometadores!
Inteiramente de acordo com o post. A língua é a língua, com as suas variantes e evoluções; a ortografia é apenas uma convenção, cuja alteração não afecta a língua.
A ortografia sempre variou ao longo dos tempos, e só no século XX,para além de alterações menores, houve duas grandes reformas ortográficas, salvo erro uma em 1911 e outra nos anos 30. A língua portuguesa nada sofreu com isso, como nada sofrerá com este acordo ortográfico.
Pessoalmente, agradava-me mais continuar a escrever como aprendi e como sempre escrevi, mas temos de nos render às realidades. O português é uma língua internacional, e os brasileiros são 200 milhões enquanto nós somos apenas 10 milhões. É evidente que, a subsistirem 2 ortografias diferentes, os estrangeiros e as organizações internacionais adoptariam a brasileira. E nós ficaríamos como uma espécie de reserva de índios. Tínhamos pois, no interesse da nossa língua e da nossa posição no mundo, de chegar a acordo com eles. De resto, cada um continuará a falar à sua maneira; os minhotos também não falam como os algarvios, nem os americanos como os ingleses.

Mensagens populares deste blogue

Divagando sobre barretes e 'experiências'…

26 de agosto – efemérides