A Pátria está possessa

Ontem, quando entrei no café, para a primeira bica da manhã, notei que a Pátria estava em desassossego. Nas ruas, dependuradas das janelas das casas, destacavam-se nas frontarias bandeiras da Pátria, algumas oferecidas pelo Diário de Notícias, com erros de ortografia impressos na China, com o «explendor de portugal» [sic], tão nítido como as cores da bandeira, que lobrigava até ao fervor dos segundos andares.

Na rua passavam pessoas com o pescoço embrulhado e o nome da pátria à volta. Aqui e ali havia quem roesse as unhas e devorasse jornais. Nas T- shirts predominavam o verde e o vermelho, com o nome da Pátria e jovens estampados, quiçá, guerreiros voluntários. Vi mulheres com pinturas exóticas, talvez de alguma tribo índia, recém descoberta, que viessem à cidade com bolsa de estudo para reintegração social.

Cri que as tropas castelhanas tivessem entrado por Almeida e marchassem sobre Lisboa. Senti que era meu dever defender a Pátria, tornar-me conjurado, oferecer a vida para dar uma oportunidade à Dr.ª Ferreira Leite para disputar o Governo. Se estivesse à frente do PSD Filipe Meneses ou Santana Lopes não se justificava o sacrifício e se fosse Paulo Portas hesitaria antes de me juntar aos espanhóis, mas, assim, arriscaria a vida. Já não era a primeira vez mas, da outra, há quarenta anos, não valeu, fui obrigado, não tive tempo de fugir e, em vez de defender a Pátria fui ocupar a pátria de outros.

Afinal ninguém queria invadir a Pátria. Eram uns turcos que gostam de jogar à bola que tinham um jogo planeado com portugueses. Era o que tinha posto a Pátria em agitação. Não havia canhões a temer mas apenas o ruído do delírio e manifestações de júbilo ou de raiva, conforme o resultado das escaramuças entre 22 rapazes a quem distribuem uma só bola, para todos.

Mesmo assim assustei-me e procurei refúgio. Barriquei-me no cinema e, à hora da batalha, enquanto a pressão arterial da rua punha em risco a saúde dos portugueses, vi comodamente o último filme de Steven Spielberg.

Comentários

e-pá! disse…
Penso que a Suiça vai organizar o Euro 08, como é sua tradição. Tudo limpinho, sem ruídos despropositados ou fora de horas, com cerveja qb e obcecados em transmitir ao Mundo uma imagem de organização impecável e ordem social.
Mas em contrapartida precisam do público.
Primeiro, porque ajuda a pagar o evento;d
Depois, porque ele é, em si mesmo, um fenómeno mediático.
Finalmente, o futebol tornou-se um enorme negócio de publicidade e o público emoldura a paisagem.

A política portuguesa – como de resto outras… - a atravessar sérias dificuldades vai – se tudo correr bem - ter uma licença sabática de quase um mês.
Mas este é um assunto crónico e recorrente de discussão entre portugueses desde os velhos tempos de salazarismo e não vou por aí.

O impressionante é a quantidade de paixões e ódios que o futebol suscita.
É um espectáculo que vai ao encontro dos métodos de globalização das sociedades actuais.
Não vamos recuar e recitar o aforismo dos “3 F’s”.
Montalbán, um escritor da nova geração catalã, fã do Barça, definiu o futebol como uma “religião benévola”.
Ele, classifica-a de “benévola” (deve supor-se que há maléovolas?)pela sua exaltada abordagem em contraste mínima interferência social.
O futebol seria uma religião por algumas caracteristicas formais da adopção dos clubes (há histórias mirambolantes sobre isto) mas, em oposição com os tradicionais ódios das crenças religiosas, é inócua.
Futebol quando não se pratica, adopta-se um Clube. E quando se adopta é quase sempre para a vida.
Trocamos de emprego , de carro, de mulher, de café, etc – raramente de clube de futebol…

Claro que com a selecção nacional é diferente. Para prosseguir no raciocínio de Montalbán chamar-lhe-ia um “nacionalismo benévolo”, que nos envolve, devolve-nos orgulhos escamoteados e dá a sensação da “Pátria possessa”. Mas não vamos invadir ninguém, não vamos excluir turcos, eslavos, celtas, ...não vamos ser racistas.

A Selecção de alguns anos a esta parte é um sucesso. Claro que os tempos são outros. O marketing de braço dado com o folclore (as bandeiras, as bandeirinhas, nas janelas, etc.) dão o toque de festa e conferem-lhe uma cadência que me faz lembrar o fandango…

Mas que, ontem, depois do jogo com a Turquia, estavamos todos contentes, é um incontornável facto!

Segunda-feira será pior porque, apesar do enorme peso que estas disputas internacionais têm em relação ao nosso ego e na actividade de relação social a vida continua com todos os problemas às costas. Mas isso é a vida...
Graza disse…
Mas que falta de curiosidade!

Olhe! Deve ser uma boa altura para levar a namorada ao cinema...
RJ disse…
Ainda ontem, domingo, dia em que portugal não jogou, me deparei com gente que ostentava um cachecol da selecção apesar dos 26 graus de temperatura.

No Sábado, não sei se o Carlos Esperança teve oportunidade de passar na praça da República depois do jogo, mas a festa era tanta que, para um indivíduo menos bem informado ou para um estrangeiro, até parecia que éramos campeões da Europa.

Não nos esqueçamos que houve no Sábado à tarde uma "caminhada pela selecção" organizada pelo Diário de Coimbra, entre a Praça 8 de Maio e o Parque Verde do Mondego, com passagem pelo Mosteiro de Santa Clara.
Não há dúvida que as caminhadas estão na moda... a fé e as iniciativas sociais afinal não têm o monopólio...

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