A Irmã Maria Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado e os direitos humanos
É sempre com uma
ponta de comiseração que, nos meus passeios diários, pela cidade de Coimbra, observo
o Carmelo onde a Irmã Maria Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado ou,
simplesmente, Irmã Lúcia, para os amigos, passou seis décadas de intensa
clausura.
Saía apenas para
votar na União Nacional quando as listas eram únicas, guardada por outras
freiras, e, durante a democracia, de que a Virgem nunca lhe falou, para votar
não se sabe onde. A estas saídas precárias acrescentou duas idas a Fátima, para
ser exibida com dois Papas de turno, Paulo VI e João Paulo II, em distantes 13
de maio.
Já antes passara
cerca de 25 anos enclausurada, primeiro no Porto, desde os 14 anos, por decisão
do bispo de Leiria, para ser protegida de peregrinos e curiosos, no Colégio das
Doroteias, antes de professar, como doroteia, em Tui, em 1928. Regressaria a
Portugal em 1946 onde estagiou para carmelita, tendo professado três anos
depois nessa rigorosa Ordem. Esteve ininterruptamente enclausurada quase 84
anos, tornando-se a mais antiga prisioneira do mundo.
Penso que a renúncia
à liberdade é um direito da própria liberdade que, se Lúcia o fez de livre
vontade, não merece qualquer reparo. Todavia, se foi coagida, houve da parte do
Estado português um atentado, por omissão, não lhe garantindo direitos,
liberdades e garantias que a Constituição consagra a todos os cidadãos
portugueses.
O facto de estar
convencida de que Salazar foi enviado pela Providência para governar Portugal,
segundo confidenciou ao cardeal Cerejeira, que, por sua vez, o transmitiu ao
ditador, leva à presunção de que precisaria de uma consulta médica especializada.
Mais do que o prurido da sarna que a atormentou, as conversas com Cristo, em
Tui, e a visita ao Inferno, posteriormente abolido sem efeitos retroativos, indiciam
confusões mentais à espera de um acompanhamento médico. E o Estado não cumpriu
o seu dever para com uma cidadã que já em criança via, enquanto guardava
cabras, uma Virgem a saltitar de azinheira em azinheira e a pedir-lhe para
rezar pela conversão da Rússia.
Dos três pastorinhos
de que o clero se serviu, primeiro contra a República, e contra o comunismo,
depois, a Irmã Lúcia foi a única que viu e ouviu a Senhora de Fátima, já que a Jacinta
só ouvia e não via, e o Francisco não via nem ouvia. Esta singularidade merecia
que o Estado a não tivesse abandonado e lhe levasse o apoio médico de que
carecia. Nunca saberemos se Lúcia suportou de motu proprio o mais longo cativeiro de que há memória ou se foi
vítima de cárcere privado para propaganda religiosa.
A liberdade é um bem
que não pode ser deixado ao poder discricionário de quaisquer instituições
privadas nem ao capricho exótico de um deus qualquer.
Ponte Europa / Sorumbático
Comentários
Conheço essa especulação. Quem sabe se não é verdade!