Uma história exemplar
Por
Alexandre Castro
Na minha aldeia, no Alto Douro Vinhateiro, houve um homem,
um pobre camponês, que enriqueceu subitamente com o negócio do volfrâmio, um
negócio altamente lucrativo, que floresceu durante o período da Segunda Guerra
Mundial. Liberto da miséria, que lhe enegrecera a vida, e com a arca e a
carteira a abarrotar de notas de conto, resolveu vingar-se do destino, e
começou a exibir com estudada ostentação o que agora se designa por sinais
exteriores de riqueza. Mandou fazer fatos por medida no alfaiate da vila de
Carrazeda de Ansiães e, pela primeira vez, começou a usar sapatos engraxados.
Fazer o nó da gravata era para ele uma autêntica tortura, que só era
compensada, a seguir, com o prazer lúdico de colocar no bolso da lapela do
casaco a caneta de tinta permanente, que lhe custara os olhos da cara, mas que
se revelara completamente inútil na sua mão, quando manobrada canhestramente
pelos dedos grossos e nodosos, calejados pelo duro trabalho da enxada.
Nas feiras da vila, passeava-se de maneira ostensiva, copiando
os tiques dos ricaços. Ficou célebre o seu enorme arroto, depois de um lauto
almoço no melhor restaurante da vila.
Para fazer sobressair a sua notoriedade, fez constar que
iria fazer uma viagem ao Porto, cidade mítica no seu imaginário, embora não
fizesse a mínima ideia da sua localização geográfica. Nem sequer sabia se era
longe ou se era perto. Apenas sabia que a viagem não podia ser feita a pé, o
que obrigava a utilizar o comboio. E assim foi. Num belo dia, meteu-se num
carro de aluguer, que o transportou até à estação do Tua. Comprou o bilhete de
1ª classe, que era a classe preferida pela gente abastada, e, quando pousou o
pé no estribo da carruagem, pensou para os seus botões que também estava a
subir mais um degrau na escala social. Dentro da carruagem, o silêncio era
absoluto, ao contrário do que acontecia nas carruagens de 3ª classe, que até
galinhas levava debaixo dos bancos de madeira, devidamente atadas pelos pés.
Sentou-se ao lado de um passageiro, que lia atentamente o jornal, e dando uma
olhadela de relance por toda a carruagem, apercebeu-se de que a maioria dos
restantes passageiros também se entregava ao prazer da leitura. Tal como a
ideia lhe veio de repente, também o impulso de se levantar para ir lá fora
comprar um jornal foi instantâneo. Já de regresso, voltou a sentar-se no seu
lugar, e empinou o jornal na frente dos seus olhos, para o começar a ler.
O passageiro do lado, entre um olhar de espanto e um sufoco
reprimido para dominar o riso, resolveu amavelmente intervir:
- Desculpe, cavalheiro, por interrompê-lo. Verifico que está
a ler o jornal às avessas!
O homem, apanhado assim de surpresa, por tal interpelação,
fechou repentinamente as folhas do jornal, como se estivesse a dar uma palmada,
estremeceu num pequeno esticão do corpo e das pernas, sinal que nele
significava arrojada determinação, e retorquiu, sem gaguejar:
- Pois, o difícil é lê-lo às avessas. Lê-lo direito, toda a
gente o lê...
Lisboa, Junho de 2012
Comentários
E talvez seja este o enigma: o país, que começa a ficar de pernas para o ar, andou também, estes anos todos, a ler tudo às avessas, mais precisamente desde aquele dia em que colocou o pé no estribo da carruagem do euro, do comboio da União Europeia, julgando que, ao colar-se ao pelotão da frente (como orgulhosamente se dizia, à época), mudava de estatuto. E o certo, é que mudou! E mudou mesmo, como estamos a ver. E a mudança começou logo pelas chapas de matrícula dos automóveis, com as estrelinhas amarelas, cujos efeitos positivos no ego da alma lusa compensaram largamente a perda da competitividade da economia, a formação do défice e o aumento do endividamento do Estado. A crise começou nessa altura, ou até antes. A partir de 2008, apenas se agravou (infinitamente?).
No meu texto, esqueci-me de acrescentar que o meu “herói”, depois de uma tresloucada e prolongada estadia no Porto, regressou a Carrazeda de Ansiães a penates. Teve de, novamente, regressar à enxada.
Obrigado pelo seu comentário, que me levou a descobrir uma alegoria no meu texto, que eu não tive a intenção de criar, quando o escrevi. É sempre assim: o texto ultrapassa, no seu significado, a vontade do seu autor.