Violência: as lições de Dallas…
A sociedade americana alberga no seu seio vários focos de tensão. Dois deles tornaram-se bem visíveis nos últimos dias: A questão racial e o problema da compra e posse de armas.
Os incidentes de Dallas link são o derradeiro episódio de uma série de 'terror cívico', bastante longa e incompreensível, que obrigam a uma reflexão.
A questão racial nos EUA manteve-se em ‘banho-maria’ desde os grandes movimentos de massas pelos direitos cívicos, ocorridos nos anos 60, onde pontificaram figuras como Malcom X e Martin Luther King.
A Lei dos Direitos Civis, promulgada em 1964 na presidência de Lyndon B. Johnson, um ‘acidental’ sucessor do Presidente John Kennedy que já havia mostrado ter sensibilidade política para estes problemas enfrentando uma cerrada oposição do Congresso, é, acima de tudo, uma natural consequência de uma longa luta de resistência às iniquidades, de carácter predominantemente pacifista.
O acto legislativo deu suporte legal ao fim de anacrónicas e abjectas discriminações mas, por si só, não foi capaz de incentivar uma cultura de abertura social, de tolerância cívica e de (com)vivência democrática.
Há alguns anos a esta parte que manifestações do tipo segregacionista reacenderam-se por toda a União traduzindo uma tensão latente que o tempo parece não ter resolvido, muito mais notória nos Estados do Sul. E o epifenómeno manifesta-se a partir de inexplicáveis episódios de violência policial. O número de afro-americanos e hispânicos mortos em resultado de confrontos policiais ou de actividades de rotina das forças de segurança pública nos EUA, durante o último ano (2015), é verdadeiramente impressionante (321 vítimas segundo a Mapping Police Violence link).
Interessa apurar se este crescendo tem alguma coisa a ver com indisfarçáveis laivos racistas residuais em sectores mais retrógrados do espectro político norte-americano, nomeadamente com um vasto e activo sector adstrito aos republicanos conhecido na gíria como ‘Tea Party’?
Uma segunda pergunta que se coloca é indagar que tipo de treino e formação têm estes corpos policiais?
Por outro lado, o problema das armas é uma melindrosa questão, com rebate constitucional, que infecta a sociedade americana.
Muitos americanos ainda vivem na senda onírica da ‘conquista do Oeste’ e nos tempos dos ‘cow-boys’, ignorando que as questões da segurança individual dos cidadãos, nos dias que correm, não dependem do rifle à cintura nem da agilidade de o sacar. A segunda emenda constitucional que estipula o direito do uso e porte de armas é um documento datado (ano de 1791) que está inserido na longínqua e gloriosa luta pela independência contra a dominação colonial mas que, no tempo presente, não tem qualquer adesão à realidade política e social dos States e do Mundo.
Hoje, a situação e a análise dos problemas da compra e porte de armas nos EUA está completamente pervertida e a NRA (National Rifle Association), fundada em 1871, nascida para associar praticantes de tiro e da caça, tornou-se num dos grandes lobbys políticos americanos, vivendo e influenciando a órbita mais conservadora (ultramontana) do Partido Republicano.
A perversa justificação política usada para defender a venda livre e justificar o porte de armas é que o ‘povo armado’ (as ‘milícias’ de então) seria a garantia (em armas) contra qualquer forma de tirania oriunda de Washington. Esta foi desde sempre uma posição que o stablishmen político americano (republicano ou democrata) usou contra actos insurreccionais e/ou revolucionários, ocorridos pelo Mundo, pelo que não se compreende que o que é considerado mau lá fora e óptimo em casa.
Dito isto, nos tempos actuais, existem duas situações catalisadoras para o exacerbar de problemas que tem conduzido a repetidos massacres e 'execuções' sumárias na via pública.
Primeiro, o Partido Republicano utiliza a ‘questão das armas’ para combater a actual Presidência, ocupada por um democrata a que acresce possuir uma origem étnica e social afro-americana e tem sistematicamente obstaculizado todo e qualquer controlo ou regulamentação federal sobre esta questão.
O ‘perigo’ para os Republicanos é uma eventual tirania oriunda do exercício do poder pelo Partido Democrático e esta corrente política pretende ter à disposição meios violentos capazes de reagir ou de, pelo menos, perturbar a ‘ordem pública’. Nos tempos que correm esta é uma atitude com reminiscências históricas e de peso meramente simbólico – as questões de poder definem-se e dirimem-se noutros âmbitos - mas que, por fidelização a ideais (ultra)conservadores, convém preservar. Durante muito tempo o ‘Mundo Ocidental’, com os EUA à cabeça, utilizou este argumento para hostilizar e combater forças políticas e sociais de Esquerda, denominando estas 'atitudes' como sendo de – ‘subversão’.
Segundo, em certa medida, a sociedade americana está a pagar o preço por tolerar (e em parte apoiar) uma inqualificável campanha protagonizada, no momento, por Donald Trump, onde a segregação rácica (não só em relação aos afro-hispano-americanos), a discriminação social com base em diferenças religiosas e uma oculta megalomania engrandecedora da América visando a enfatização de um imperial ‘poderio yankee’, só podem conduzir ao desastre.
Estas são lições (não as únicas) a tirar sobre os graves incidentes da última semana em Dallas.
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