Liberdade religiosa e laicidade

Nas sociedades democráticas a liberdade religiosa tende a ampliar-se. A separação da Igreja e do Estado possibilitou a igualdade, o respeito e a livre expressão de todas as convicções, das não convicções e mesmo das anti-convicçõs religiosas.

Apesar do azedume de quem pretende impor as suas crenças e confunde liberdade com obrigação, a fé tornou-se facultativa.

Portugal, à semelhança dos outros Estados democráticos, consagra o direito de «Ter, não ter e deixar de ter religião» e «escolher livremente, mudar ou abandonar a própria crença religiosa» (Lei da Liberdade Religiosa N.º 16/2001 – art. 8º).

Apesar das campanhas orquestradas para convencer os portugueses de que não se deve tratar de forma igual o que é diferente, atribuindo privilégios escandalosos à igreja católica, tem-se preservado, após o 25 de Abril, uma razoável liberdade religiosa.

Talvez por isso choque tanto o caso do médico Abdul Rahman que arrisca a condenação à morte, num tribunal de Kabul, por se ter convertido ao cristianismo. Os clérigos, que seguem excitados o julgamento, não têm dúvidas – vem no Corão –, deve ser executado, e aproveitam as orações da sexta-feira para clamarem pela sua morte, como refere o New York Times de 24-03-06.

No Afeganistão, a intervenção aliada, para além de manter no poder um ditador mais tolerável, não conseguiu resultados significativos nem que a sharia fosse abolida. A fé e a papoila continuam pujantes.

Na Argélia, para impedir o avanço do cristianismo, está em vias de promulgação uma lei que prevê penas de 2 a 5 anos de prisão e multas de 5.000 a 10.000 euros contra os que « incitem, obriguem ou utilizem meios de sedução para converter um muçulmano a outra religião», lei extensiva a quem distribua, faça ou detenha documentos que «busquem minar a fé dos muçulmanos» (El País, 22-03-06).

Não se julgue que a violência é exclusiva do Islão, cujo fanatismo se agrava desde 1979, após a vitória do ayatollah Khomeini, no Irão. O protestantismo evangélico dos EUA, no início do séc. XX, evidenciou o proselitismo, a recusa da distinção entre o sagrado e o profano, a difusão do deus apocalíptico, cruel, violento e avesso à modernidade saído da exegese bíblica de pregadores exaltados.

A recente aproximação do Vaticano à Sociedade S. Pio X (SSPX), cujos crentes foram excomungados pelo ódio ao concílio Vaticano II e posições abertamente fascistas e anti-semitas de alguns dos seus bispos, não é um bom presságio.

Há dirigentes políticos do Ocidente, que juraram sobre a Bíblia defender a Constituição e comportam-se como se tivessem jurado sobre a Constituição defender a Bíblia.

Em vez da defesa da laicidade, impedindo as religiões de infiltrarem e condicionarem os Estados, assistimos à nefasta politização de religiões cristãs, à semelhança do islão, com consequências imprevisíveis.

O Estado deve declarar-se incompetente sobre matérias religiosas e manter-se alheio em relação às Igrejas. A absoluta neutralidade confessional e a separação radical entre a esfera pública e a privada, são a garantia de que nenhuma confissão, corrente filosófica ou associação se aproprie de forma permanente e definitiva do espaço público.

As religiões do livro consideram abominações e prescrevem a morte para a apostasia, o adultério, a blasfémia e a homossexualidade. É o destino que as teocracias reservam aos pecadores. Em democracia são actos juridicamente irrelevantes e, alguns deles, direitos indeclináveis.

Na Europa já foi hábito condenar os réprobos ao churrasco, mas a civilização remeteu para o tribunal divino, com ou sem intermediação clerical, a respectiva sanção.

A mistura de religião e política não faz melhor um país mas torna pior o Estado. Entre crime e pecado vai a distância que separa o Código Penal dos livros sagrados.

A Europa, após a guerra dos 30 anos, conseguiu em 1648 a emancipação do Estado face à religião (paz de Vestefália). As leis de separação dos séc. XIX e XX instituíram a liberdade religiosa e a independência do Estado.

Cabe, hoje, a quem foi capaz de conter o cristianismo no seu próprio habitat defender o direito de ser cristão em qualquer parte do mundo, do mesmo modo que garante no seu espaço a liberdade religiosa, incluindo o direito à apostasia e à blasfémia.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem não é uma enumeração de intenções, é um imperativo ético e jurídico que merece respeito universal: «Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos…».

Comentários

Mano 69 disse…
É por isso é que Carlos Esperança antes de se deitar diz “graças a Deus sou ateu”!
Anónimo disse…
Mano 69:

Não sei se o admire pela paciência ou se o felicite por ter sido o único leitor.
Mano 69 disse…
E olhe que li a sua posta transversalmente...
Anónimo disse…
Keep up the good work » »

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