Ou exame ou almoço (crónica)
No dia 1 de Outubro de 1961, logo pela manhã, curvei-me respeitosamente perante um indivíduo de meia idade para lhe disparar, V. Ex. é o sr. Delegado Escolar? E o indivíduo a retorquir-me: – E o cavalheiro quem é?
Depois de ter declinado o nome e informado quem era, enquanto aliviava da posição respeitosa e já lhe segurava a mão fraternalmente estendida, ouvi dizer-lhe: trata-me por Alexandre. Era o António Antunes Alexandre a caminho dos 50 anos, a exigir-me o tratamento por tu, dificuldade que havia de custar-me a vencer nesse ano de 1961, e a despachar-me para a escola dos Penedos Altos, na Covilhã.
Algum tempo depois de terem começado as aulas fui mobilizado para integrar a comissão de recenseamento escolar que tinha por missão preencher os verbetes com o nome de todas as crianças nascidas em 1955, de modo a confirmar se todas se apresentavam no ano seguinte para a frequência dos quatro anos de escolaridade que o regime tinha declarado obrigatórios e suficientes. Era um trabalho extra, imposto, fora do horário lectivo, prestado na conservatória do registo civil, a explorar os livros de registos e a transcrever os assentos de nascimento.
Não tardou que me aparecesse a primeira criança filha de pais incógnitos e, a seguir, outras, filhas de pai determinado e de mãe incógnita. Estas intrigaram-me, de facto, o que me levou a indagar junto dos colegas como era possível. Todos tinham já experiência de situações iguais mas desconheciam a razão. E não eram poucos os casos.
Fui logo perguntar ao conservador como era possível. Elucidou-me que eram filhos de mulheres que tinham rompido o casamento canónico e que, amancebadas, geraram filhos de outro homem, não podendo, pois, assumir a maternidade. Podiam, é certo, pô-los em nome dos legítimos maridos cuja paternidade legalmente se presumia mas, ou porque não quisessem ou não o permitissem os pais biológicos, por quererem assumir a paternidade, estavam no seu direito, a mulher não podia reivindicar a maternidade. O casamento era indissolúvel e sagrado.
Essas crianças dar-se-iam conta um dia, ao verem a menção de mãe incógnita no bilhete de identidade, que lhes cabia pagar pelo desmando dos progenitores, castigo infligido pela perturbação da moral e dos bons costumes.
Estavam lançadas as primeiras dúvidas sobre o poder e as leis, acerca da moral e dos seus fundamentos, o que me conduziria à reflexão sobre “A origem da família, do estado e da propriedade privada”, livro que, oportunamente, o Dr. Raposo de Moura me recomendou.
Algum tempo depois já era abraçado por operários desconhecidos e chegava à escola com o “Têxtil” debaixo do casaco.
Mas, antes, já o padre Morgadinho me denunciara à PIDE, dizendo que havia um professor novo, atrevido e com cara de idiota que precisava de ser vigiado. Creio que até hoje não lhe perdoei ter-me chamado novo, aos 18 anos.
Mas foi no fim do ano lectivo, desse ou do seguinte, que o empenho de uma mãe para não levar o filho a exame me abalou. A mulher teve de repetir três vezes o pedido que eu reformulei ainda a certificar a acuidade auditiva e a tentar compreender. Era esse, de facto, o pedido porque, segundo alegava, se o menino passasse, no ano seguinte já não poderia comer na cantina e ela não tinha que lhe dar de comer em casa. E lá se ia a sopa de feijão, o copo de leite e a carcaça que entalava o pedaço de marmelada que no dia seguinte alternava com o de queijo.
Nem teria precisado de ver os meninos da escola, até altas horas da noite, a intermediar a prostituição, na estrada que ligava a Covilhã a Aldeia do Carvalho, na Borralheira, Pousadinha ou Lameirão. Bastava ler os olhos tristes e adivinhar a fome nas caritas dos filhos dos homens que não puderam ser meninos como tantos outros que despertaram a ternura de Soeiro Pereira Gomes.
Não faltam receitas para fazer cidadãos. Faltam pessoas.
Depois de ter declinado o nome e informado quem era, enquanto aliviava da posição respeitosa e já lhe segurava a mão fraternalmente estendida, ouvi dizer-lhe: trata-me por Alexandre. Era o António Antunes Alexandre a caminho dos 50 anos, a exigir-me o tratamento por tu, dificuldade que havia de custar-me a vencer nesse ano de 1961, e a despachar-me para a escola dos Penedos Altos, na Covilhã.
Algum tempo depois de terem começado as aulas fui mobilizado para integrar a comissão de recenseamento escolar que tinha por missão preencher os verbetes com o nome de todas as crianças nascidas em 1955, de modo a confirmar se todas se apresentavam no ano seguinte para a frequência dos quatro anos de escolaridade que o regime tinha declarado obrigatórios e suficientes. Era um trabalho extra, imposto, fora do horário lectivo, prestado na conservatória do registo civil, a explorar os livros de registos e a transcrever os assentos de nascimento.
Não tardou que me aparecesse a primeira criança filha de pais incógnitos e, a seguir, outras, filhas de pai determinado e de mãe incógnita. Estas intrigaram-me, de facto, o que me levou a indagar junto dos colegas como era possível. Todos tinham já experiência de situações iguais mas desconheciam a razão. E não eram poucos os casos.
Fui logo perguntar ao conservador como era possível. Elucidou-me que eram filhos de mulheres que tinham rompido o casamento canónico e que, amancebadas, geraram filhos de outro homem, não podendo, pois, assumir a maternidade. Podiam, é certo, pô-los em nome dos legítimos maridos cuja paternidade legalmente se presumia mas, ou porque não quisessem ou não o permitissem os pais biológicos, por quererem assumir a paternidade, estavam no seu direito, a mulher não podia reivindicar a maternidade. O casamento era indissolúvel e sagrado.
Essas crianças dar-se-iam conta um dia, ao verem a menção de mãe incógnita no bilhete de identidade, que lhes cabia pagar pelo desmando dos progenitores, castigo infligido pela perturbação da moral e dos bons costumes.
Estavam lançadas as primeiras dúvidas sobre o poder e as leis, acerca da moral e dos seus fundamentos, o que me conduziria à reflexão sobre “A origem da família, do estado e da propriedade privada”, livro que, oportunamente, o Dr. Raposo de Moura me recomendou.
Algum tempo depois já era abraçado por operários desconhecidos e chegava à escola com o “Têxtil” debaixo do casaco.
Mas, antes, já o padre Morgadinho me denunciara à PIDE, dizendo que havia um professor novo, atrevido e com cara de idiota que precisava de ser vigiado. Creio que até hoje não lhe perdoei ter-me chamado novo, aos 18 anos.
Mas foi no fim do ano lectivo, desse ou do seguinte, que o empenho de uma mãe para não levar o filho a exame me abalou. A mulher teve de repetir três vezes o pedido que eu reformulei ainda a certificar a acuidade auditiva e a tentar compreender. Era esse, de facto, o pedido porque, segundo alegava, se o menino passasse, no ano seguinte já não poderia comer na cantina e ela não tinha que lhe dar de comer em casa. E lá se ia a sopa de feijão, o copo de leite e a carcaça que entalava o pedaço de marmelada que no dia seguinte alternava com o de queijo.
Nem teria precisado de ver os meninos da escola, até altas horas da noite, a intermediar a prostituição, na estrada que ligava a Covilhã a Aldeia do Carvalho, na Borralheira, Pousadinha ou Lameirão. Bastava ler os olhos tristes e adivinhar a fome nas caritas dos filhos dos homens que não puderam ser meninos como tantos outros que despertaram a ternura de Soeiro Pereira Gomes.
Não faltam receitas para fazer cidadãos. Faltam pessoas.
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