A guerra esquecida

Na Província do Niassa correu mansa a guerra nos anos de 1968 e 1969. Cerca de meia dúzia de mortos mensais e o dobro de estropiados era a sequência que avivava a mágoa quotidiana e aliviava a tensão nos dias seguintes.

No Batalhão de Caçadores n.º 1936 a morte consumia dois ou três camaradas por semestre, distribuídos pelas Companhias. Não era a morte que mais nos apoquentava. A saudade, o medo e a revolta faziam-nos descrer da bondade da civilização cristã e ocidental que o cardeal Cerejeira garantia em Portugal e o bispo Reis Rodrigues repetia em Moçambique, de batalhão em batalhão, fardado de brigadeiro.

No Catur o comandante era um militar experiente, com elevada noção de ética e coragem pouco comum. Seguia de jipe à frente das colunas com a mesma naturalidade com que me deu a ler o pedido da PIDE para me vigiar.

Os presos eram interrogados pelo major Artur Beirão que recordo a comunicar, meu Comandante, pelos meus métodos os presos não falam, e o Ten. Cor. Luís Vilela a retorquir-lhe, nem eu te consentia que usasses outros.

Depois eram entregues à PIDE e ninguém previa se falavam ou não, era certo que desapareceriam.

Tive a sorte de não assistir a cenas de tortura nem a interrogatórios humilhantes, mas não era esse o tratamento generalizado nas unidades militares a que não faltava um capelão para aliviar consciências mais sensíveis. O padre Joaquim era excepção, contra a guerra, ao contrário de outros capelães que preferiam segurar a G-3 em vez do cálice e dispararem em vez de administrarem a eucaristia.

Na violência da guerra a crueldade dos homens acaba sempre por se revelar. Em Malapísia, o alferes André, formado na universidade de Mafra, adorava interrogatórios e babava-se de gozo a usar a faca de mato enquanto aguardava respostas.

Nunca esquecerei aquele negro grande e sereno que entrou no aquartelamento do Catur com um pé embrulhado em ligaduras. Faltava-lhe a última falange do dedo grande, decepada lentamente pelo André enquanto mantinha o silêncio e sofria. Diziam os soldados que o turra não sentia dor, que era outra forma de referir a coragem do moçambicano, enquanto o tradutor afirmava que ele não queria falar.

Redimiu-nos da cobardia a postura do Comandante a adverti-lo severamente e a ameaçá-lo com a transferência disciplinar para o Cabo Delgado onde os macondes eram mais eficazes a abater as tropas ocupantes.

Nunca se julgaram crimes de militares portugueses, ou seja, da ditadura e isso permite que a mentalidade colonialista perdure entre antigos combatentes e associações de ex-militares onde o pensamento fascista é cultivado.

Os soldados da Companhia 1626 usavam porta-chaves de orelhas e falangetas desidratadas como troféus gloriosos de uma guerra que ninguém ousou julgar.

Um alferes que saíra do seminário e, pouco depois, fizera a recruta em Mafra era motivo de galhofa na Companhia. Quando o capitão, após operações bem sucedidas, o inquiria sobre os prisioneiros, perante gargalhadas dos soldados, o Joaquim dizia que não os trouxera, era longe…

O furriel Lopes, do Entroncamento, catequista que namorava outra catequista – segundo me disse –, enquanto convalescia de uma doença venérea, gabava-se de atar ao Unimog os turras que se recusavam a falar e de chegar ao quartel com a corda.

O Ribeiro da Fonseca perseguia o IN (inimigo) até ao Malawi e regressava com um pequeno rebanho de cabras e enorme alegria. O roubo impedia a sobrevivência de infelizes para quem a vida era precária e sofrida. Acabou condecorado na Guiné com a Torre Espada, já capitão, depois de ter sido furriel em Angola e alferes em Moçambique e de ter a cruz de guerra e a medalha de serviços distintos a preceder a condecoração mais alta. Há-de andar por aí com o peito cheio de veneras e o ombro coberto de galões sem ter percebido que a valentia só é útil quando é digna a causa.

Demorei 38 anos a revelar isto. É demasiado cedo para continuar. Ainda me dói a memória, ainda sofro as lúgubres cerimónias do 10 de Junho que parecem voltar, a exaltação dos heróis do Ultramar, o tempo sórdido cujo branqueamento está em curso.

Carlos Esperança in Jornal do Fundão, hoje.

Comentários

Anónimo disse…
Este, é um texto doloroso. Mas é importante que salte cá para fora tudo aquilo que se viveu e testemunhou. Faltou-nos em relação à Guerra Colonial a catarse de toda a violência gratuita exercida sobre populações indefesas. Depois do 25 de Abril, as nossas consciências atormentadas preferiram o silêncio para não acordar fantasmas.

Ao ler este texto do C. Esperança, recuei trinta e cinco anos na memória do tempo. Acontecimentos como os relatados e outros do mesmo jaez chegavam ao meu conhecimento, colocado que estava como capitão miliciano numa repartição no Quartel General de Nampula, através das páginas de relatórios de acções de combate, enquadradas por encenações de heroísmo e de abnegação, onde o Batalhão de Comandos se destacava. Os inimigos referenciados como abatidos em combate eram em tão elevado número que, de uma das vezes, interpelei ironicamente o major Jaime Neves quanto à mais que provável hipótese de a Frelimo já não ter combatentes. Eu sabia que, para a miserável contabilidade da vitória, os indefesos civis mortos eram arrolados como inimigos (IN). Assim como sabia que o topónimo Wiriamu, ao contrário do que o Marcelo Caetano despudoradamente afirmou, existia, pois assim vinha referenciada, no respectivo relatório de combate, a aldeia onde o massacre ocorreu.

Este texto vai fazer sangrar a memória daqueles leitores que tenham sido combatentes naquela guerra do nosso descontentamento. É um texto que acorda os fantasmas e os medos.
Vítor Ramalho disse…
Morrer pela Pátria é uma honra que só é atribuída a alguns.
Quanto à guerra colonial foi tão tola e nefasta quanto a descolonização.
e-pá! disse…
CE:

Tem sido publicada imensa literatura versando a guerra colonial.
Na verdade, esta injusta guerra decorreu contra corrente histórica, a favor da obstaculização salazarista e ao arrepio dos caminhos que o Mundo tomou, no final da II Guerra.
Ficamos sós...
As consequências foram dramáticas (para ambos os lados) quer ao nivel de vidas, estropiados e, também, no foro psicológica.
As guerras, como os mortos, necessitam de um luto. O nosso prolonga-se penosamente, parecendo uma ferida crónica que teima em não cicatrizar.
Daí, a importância do post sobre a "guerra esquecida".
Daí, a urgência de entar num caminho de VERDADE e RECONCILIAÇÃO, como fizeram muitos Países que, à revelia de soluções humanitárias, se envolveram em guerras.
jrd disse…
A nossa dor colectiva plasmada numa escrita terrívelmente sofrida, mas que urge ver repetida.
É minha a tua memória Amigo!
Anónimo disse…
Camisa azul:
És provavelmente demasiado novo para falar do que falas, dadas as confusões que trazes na cabeça.
Eu vou-te responder não como gosto, mas como tu, provocador, mereces.
Cabrões como tu havia-os aos milhares, no tempo da tua guerra heróica. Compravam por bom preço umas divisas de cabo amanuense, para não irem parar ao mato, à frente duma companhia de atiradores.
Hoje, aqui, não fazes falta nenhuma, a insultar memórias dolorosas com as tuas tiradas patrióticas. Mas na Guiné tinhas dado um grande jeito, tinhas mesmo justificado o pão que comes. Tinhas apanhado uma bala nos cornos, ou pisavas uma mina, e estavas hoje enterrado na bolanha da Bambadinca, coberto de capim, rodeado de eleitos e inchado de furor nacionalista. Até eu te mandava, com prazer, rezar uma novena por alma.
Porque faltaste lá, outros lá ficaram em teu lugar. Usados, violados, sacrificados em teu lugar. Outros que fazem hoje falta aqui, e não diriam as tuas baboseiras sobre a descolonização.
Anónimo disse…
A guerra colonial, como qualquer guerra, deixou marcas profundas, depois de tantos anos, contínua a recordação...

No norte de Angola, a minha companhia, era constítuida por portugueses e cabo verdeanos,não se cometeram excessos... o pessoal estava lá, para ver chegar o fim da comissão, sem problemas...

Houve muito esforço, muita noite sem dormir, muito perigo, muita tensão, estávamos na guerra...
Após do 25 de Abril, aqueles que, tiveram a desdita de ir à guerra colonial foram desconsiderados...foi triste.

Os que fugiram e entretanto regressaram, eram heróis, apesar de, na sua maioria, o terem feito por cobardia.

Muito maltratada tem sido a minha geração...
Vítor Ramalho disse…
jagudi

Teria tido muito honra em morrer pela Pátria.
Os insultos vindos de pessoas da sua laia para mim são elogios e não me metem medo nenhum.
O dever é mais pesado que uma montanha a morte é mais leve que uma pena.
Anónimo disse…
jagudi:

Patriotas são os que gostam da sua pátria.

Os camisas azuis, pretas e de outras cores - os nazis - gostam também da pátria dos outros.

Hitler gostava do mundo inteiro e de exterminar judeus, homossexuais, ciganos e deficientes.

Enfim, dementes.
ana disse…
jagudi
não perca tempo e palavras com camisas azuis. falam do que não sabem, têm a cabeça cheia de lixo e maldade. talvez não se sentissem tão honrados se vissem as suas tripas espalhadas na picada ou ficar em pedaços um irmão ou um amigo.nesses anos malditos, quase não havia uma família em Portugal que não fosse afectada pela estúpida guerra. toda a gente lá tinha irmão,marido ou filho. naõ se fala disso, nunca se fala disso. mas é preciso falar, fazer o luto, para depois seguir em frente, enfim reconciliados.
Anónimo disse…
Camisa azul:
Provavelmente aceitas que eu já conheço essa tua metafísica.
Tão sem sentido, que nem acredito que tu próprio acredites nela.
Fazes-me lembrar uns tipos que têm setenta virgens à espera. Um sortudo, é o que tu és!
Vítor Ramalho disse…
Insultos e mais insultos, certamente que cara a cara nem abriam a boca.
Aqui se juntam os burgueses de esquerda, que não são outra coisa que a guarda avançada do regime capitalista.
A sua raiva, o seu protesto, não é dirigido contra o sistema como supõem, mas apenas contra a hipocrisia deste. Os princípios a que se apegam são os que o sistema apregoa e quotidianamente viola em nome da sua própria eficácia.
Anónimo disse…
Olha, camisa azul!
A queixar-te assim dos meus insultos, estás apenas a armar em virgem ofendida, e eu para isso não tenho paciência.
Mas porque falas em regime capitalista, e noutros conceitos que deixas nebulosos, proponho-te um exercício mais útil: dou-te o tempo de que precisares (e que o blogue nos permita, claro!) para discutir contigo o que é que tu afinal queres: na sociedade, na política governativa, na economia, nas relações internacionais, na história, na educação, no ambiente, na cultura, no mundo, onde quiseres.
É que a última vez que nos encontrámos na rua foi em 1974. Ias tu de calças na mão, a tentar passar despercebido, cheio de medo e de vergonha do estado a que tinhas conduzido o país, ao fim de gerações de poder absoluto e regabofe. Deixaste ao povo as facturas por pagar e puseste-te ao fresco, aproveitando a ingenuidade de quem não achou fundamental pedir-te contas.
Quererás tu, desta vez, explicar?
Anónimo disse…
jagudi:

O Ponte Europa não só permite como estimula o debate. Apenas não permitirá manifestações racistas, xenófobas e de estímulo ao ódio.

Mas isso ver-se-á, a seu tempo, e não é da sua parte que surgirá.

Cumprimentos.
Anónimo disse…
Em 12 anos de guerra colonial morreram menos pessoas que em 10 anos nas novas estradas portuguesas.
Anónimo disse…
Jg!
Ponha lá treze anos de guerra colonial, já que lhe custa assim tanto pôr catorze!
E se acha que os dez mil, de quem só restam os nomes na pparede do forte do Bom Sucesso, são assim tão poucos, vá lá acrescentar os que vieram em cadeira de rodas, sem tomates, ou sem pernas, ou sem tino, ou sem vida futura, e que ainda andam por aí.
Limpar o erro e a ignomínia da guerra colonial com o número de acidentados na construção civil, ou no trânsito, ou num caprichoso acidente vascular cerebral, é um exercício que só mentecaptos admitem.
Anónimo disse…
Ao JG

Comparar o número de mortos, na guerra colonial com o números de mortos nas estradas portuguesas é infeliz... aqueles que envergaram a farda do exército colonial e tiveram a desdita de morrer, deviam ter a sua memória, muito, mas muito respeitada.

Ao camisa azul

Os nacionalistas e pseudo patriotas que por acaso, também os havia no tempo da guerra colonial, eram os primeiros a adoecer quando havia operações complicadas ou acções de perigo eminente, dei conta disso, quando me obrigaram a passar 29 meses, da minha vida, no interior do norte de Angola.
Quero dizer com isto que os tais, são os primeiros a dar o...fora que se faz tarde.

Mensagens populares deste blogue

Divagando sobre barretes e 'experiências'…

26 de agosto – efemérides