A interrupção voluntária da gravidez

(Texto escrito a 3 de Fevereiro de 2005. Republicado porque é preciso não esquecer, agora que a lei vai mudar, que o problema do aborto não terminou...).


A legislação relativa à IVG resulta, na sua estrutura fundamental, de uma Lei de 1984. Nesse diploma a AR descriminalizou a IVG, quando realizada com o consentimento da mulher, sob direcção de um médico e em estabelecimento de saúde oficial (ou oficialmente reconhecido) em certas circunstâncias. Estas, resumindo, são as seguintes: a indicação terapêutica (a IVG tem em vista evitar a morte ou grave e duradoura lesão para o corpo ou saúde física e psíquica da mulher), a indicação fetopática (quando se detecte que o feto virá a sofrer de doença grave e incurável ou de malformação congénita grave) e a indicação criminológica (no caso de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da mulher).
Por vezes a lei impõe prazos (de 12, 16 ou 24 semanas), por vezes pode ser realizada em qualquer fase da gravidez: quando constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida ou quando o feto seja inviável.
Em todos os outros casos em que a mulher decida abortar, o Código penal ordena a sua punição com prisão até 3 anos.
Na generalidade dos países europeus e norte-americanos a situação é diversa, tendo-se descriminalizado a IVG quando realizada a pedido livre e esclarecido da mulher grávida, realizada por um médico em centro de saúde autorizado e desde que dentro das primeiras 10 ou 12 semanas de gravidez. Visa-se, entre outros objectivos, lutar contra o aborto clandestino, trazendo as mulheres para o sistema de saúde, de forma a se lhe poder proporcionar assistência e acompanhamento na sua saúde sexual e reprodutiva. Uma solução semelhante foi já aprovada no nosso Parlamento, mas acabou por ser derrotada, por margem mínima, no Referendo de 1998.
Na próxima legislatura voltaremos, todos nós, eleitos e eleitores, a ter que nos pronunciar sobre a matéria. Tenho para mim que o modelo vigente não é o mais adequado: tem criado desigualdades e injustiças sociais, descrédito do sistema judicial e não promove uma verdadeira educação para a saúde sexual e reprodutiva. E nem parece que tenha permitido evitar o recurso à IVG.
O que está em causa no debate sobre a descriminalização da IVG até às 10 semanas não é reduzível às fórmulas simplistas: “ser a favor da vida” ou “o embrião é propriedade da mulher”. Todos concordamos que o embrião merece respeito e protecção jurídica.
Todavia, a decisão de interromper a gravidez é e será sempre extremamente dolorosa e profundamente dramática para uma mulher e urge criar todas as condições para que ela possa exercer na plenitude a maternidade. Contudo, se não é essa a sua possibilidade ou a sua vontade, a intervenção do sistema policial e judicial não parece justificada, causando mais prejuízos que benefícios.
As causas do aborto devem ser combatidas a montante. Devemos apostar na educação para a sexualidade e deveremos criar uma sociedade mais fraterna e mais solidária em que cada mãe e cada casal tenha as condições económicas e sociais para educar uma criança. Descriminalizar a IVG, nas condições propostas, não significa ‘liberalizar’ ou ‘banalizar’ esse comportamento tão penoso para a própria condição da mulher. Trata-se de tratar com humanidade as mulheres que se encontram em situação tão dolorosa. Simultaneamente julgo criticável a publicitação desta actividade. Aliás, em alguns países, como a Alemanha, é proibida a publicitação, bem como a obtenção de qualquer lucro com esta actividade. Estes e outros assuntos, como a inserção de um prazo de reflexão de 3 dias ou o acesso obrigatório a uma consulta de apoio psicológico e social, deverão ser debatidos na especialidade no momento da elaboração de um diploma na Assembleia da República.
Para já o que as portuguesas e os portugueses terão que reflectir para em breve se pronunciarem em Referendo é se deveremos manter uma punição injusta, discriminatória, que não está a dignificar a condição da mulher nem sequer a proteger o direito à vida, que todos sinceramente defendemos.

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