A chave do fundamentalismo…
Julgo que o simbolismo da entrega das chaves de uma cidade a um cidadão será um galardão que remonta à época das fortalezas medievais onde as urbes se acolhiam por detrás de intransponíveis muralhas e cujo acesso [‘pacífico’] só seria possível através da porta-de-armas. Transposto o fosso, e uma eventual ponte levadiça, a abertura dessa porta – daí a importância da chave - dava acesso à povoação e ao disfrutar de acolhimento e mordomias.
Assume, neste contexto, particular relevo a entrega das chaves de Granada [1492], protagonizada pelo último rei mouro (Bobadil), na sua rendição aos reis católicos (Fernando e Isabel) provavelmente com a intenção preservar o Alhambra (uma espetacular joia da arte islâmica no Al-Andaluz) de um saque eminente. Foi um acto presenciado por uma multidão de sitiados e conquistadores e esta cerimónia revestiu-se de um simbolismo extaordinário já que representa a conclusão da ‘reconquista ibérica’ aos islamizados berberes invasores e assim fechou a ‘grande cruzada’ iniciada em 722. Esta terá sido a ‘entrega de chaves’ com maior significado histórico e político da Península.
De resto, a entrega das chaves das cidades a ‘ilustres’ visitantes ou residentes foi uma prática comum e rotineira ao longo da história da Humanidade.
Tudo isto a propósito da decisão da Câmara de Lisboa de vir a atribuir a Mário Soares essa distinção link . Independentemente, do ‘gostar’, ou não ‘gostar’, de Mário Soares – as figuras consensuais na política afirmam-se frequentemente pela negativa - a verdade é que o cidadão em causa possui currículo mais do que suficiente para receber essa distinção.
Trata-se de uma honraria que não terá muito significado para os lisboetas e para os portugueses.
Na realidade, sendo uma menção honrosa atribuída a “personalidades, instituições ou organizações nacionais ou estrangeiras que, pelo seu prestígio, cargo, acção ou relacionamento com Lisboa, sejam considerados dignos dessa distinção” link, por norma, tem sido atribuída a chefes de Estado estrangeiros de visita à capital o que representa uma ‘cortesia’, ou se quisermos, uma ‘urbanidade’.
O alarido que o CDS/PP resolveu fazer sobre o assunto à volta de uma pretensa radicalização verbal exibida pelo ex-primeiro-ministro e ex-presidente da República e, sublinhe-se, munícipe lisboeta que, nos últimos tempos tem zurzido a maioria governativa, veio conferir um novo significado na atribuição das chaves de Lisboa link, transformando um gesto protocolar e palaciano (emanado do ‘domus municipalis’), num facto político.
Até hoje – e na presente versão das chaves de honra da cidade - só 3 portugueses mereceram a essa distinção do município lisboeta. Por ordem cronológica: Carlos Lopes, José Saramago e Durão Barroso. Não vamos discutir o mérito, ou demérito, destas personagens embora ‘eles’ possam ser um fértil terreno de oposições, divergências e intrigas. Esses personagens configuram o ‘mix’ quotidiano da democracia aberta e participativa onde não há lugar para entes ‘únicos’, ‘incontornáveis’ e ‘insubstituíveis’ e são o exemplo do convívio entre situações diversas e distintas (política, social e culturalmente) que obviamente não aspiram a reger-se por um estatuto de unanimidade. Mas, na verdade, essa pluralidade de critérios foi - até ao caso presente - pacificamente aceite e absorvida pela comunidade da civitas, sem sobressaltos ou outras questiúnculas.
E chegados aqui deparamos com a presente posição do CDS em relação a Mário Soares que faz ressuscitar um presente e oculto radicalismo político inserido numa velha fachada demo-cristã, um pouco afeito a cultivar índex, anátemas e hereges. E quanto a radicalismos estamos conversados.
Resta-nos esperar que não suceda a Soares o mesmo que aconteceu a Freitas do Amaral na sede do CDS. Se em azarado dia (para o País) chegar a Belém alguém das cores do CDS (salvo seja!) tornou-se legitimo suspeitar que Mário Soares venha a ser ‘apeado’ da galeria de retratos dos presidentes.
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